Calçado vai ter 49 milhões para entrar na indústria digital

Reforço da capacidade de fabricar sapatos personalizados, unidades com sensores no chão a comandar as linhas de fabrico, calçado com geolocalização… A indústria vai ter 49 milhões para uma nova vaga de modernização.

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Portugal esteve representado na Feira de Calçado de Milão Diogo Baptista

Em passo apressado, Manuel Caldeira Cabral, ministro da Economia, andou ontem pela maior feira mundial do calçado, em Milão, a visitar umas duas dezenas de empresas portuguesas, mas houve uma que lhe despertou uma curiosidade especial: a Hemisfério Verde. A dona da marca All Hour Zen anda a desenvolver um modelo de negócio que passa pela instalação de scanners nos postos de venda capazes de tirar um retrato perfeito aos pés de cada um dos seus clientes. Depois, as imagens são enviadas para a fábrica que trata de fazer sapatos ou botas à medida dos pés de cada freguês. A realidade não é virtual – a Hemisfério Verde já trabalha assim para clientes da Holanda ou da Alemanha –, mas suscitou ao ministro uma declaração algures entre o espanto e o entusiasmo: “Isso é Indústria 4.0”, disse.

Boa parte das explicações para o sucesso do sector do calçado, que nos últimos sete anos cresceu mais de 50% na exportação, está na incorporação de tecnologia no seu processo industrial. Mas dificuldades como as que a Hemisfério Verde sente – “É difícil fazer a modelagem ou as costuras par a par”, diz Paulo Ribeiro –, levaram a APICCAPS, a associação empresarial do sector, a desenvolver uma nova estratégia para reforçar a ligação do calçado à era digital. Chama-se “Footure”, poderá implicar investimentos até 49 milhões de euros comparticipados pelos fundos europeus e enquadra-se na iniciativa do Governo para a modernização da indústria, o programa Indústria 4.0. “A ideia passa por eleger o consumidor como foco da nossa estratégia”, instalando nas fábricas tecnologias aptas para “dar respostas ainda mais flexíveis e mais rápidas” à procura, diz Manuel Carlos, presidente da associação.

Uma equipa que integra o INESC-Tec do Porto, o Centro Tecnológico do Calçado já inventariou caminhos que permitirão a empresas como a Hemisfério Sul produzir sapatos individualizados sem custos exorbitantes. Nesses caminhos entra a partilha de soluções com o cliente, a logística, a robótica inteligente, a prototipagem ou soluções futuristas como o recurso a sistemas ciber-físicos. “Os chãos das fábricas poderão vir a ter sensores que darão ordens às linhas de produção”, acrescenta Manuel Carlos. E os sapatos poderão vir a ter chips de geolocalização (para as crianças, por exemplo) e uma série de serviços incorporados.

Uma das maiores vantagens da indústria do calçado está já na elevada incorporação de tecnologia no seu processo produtivo. Hoje, uma linha de uma fábrica consegue produzir vários modelos ao mesmo tempo, sem ser necessário parar para mudar as peles, as cores ou o formato das solas. Essa conquista tornou a indústria portuguesa capaz de dar respostas a pequenas encomendas num curto espaço de tempo – uma vantagem para os compradores. A incorporação de tecnologia na produção, ou a gestão logística, ajudou o sector a “perceber que o caminho é competir pela qualidade e não pelo preço”, reconhece Manuel Caldeira Cabral.

A feira de Milão, que abriu este domingo com a presença de 97 empresas nacionais é o lugar onde melhor se pode perceber essa opção. A vanguarda da indústria nacional bate-se de igual para igual com franceses ou italianos no design, na qualidade, no uso de materiais originais – ou na comunicação. No calçado, ser português tem um valor crescente. Empresas como a Felmini ostentam a bandeira nacional na entrada. Criadores como Carlos Santos vendem sapatos clássicos a mais de 500 euros o par. Luís Onofre tem o seu espaço cheio de clientes de diferentes proveniências à procura das suas criações para mulheres com fortuna e gostos arrojados. Fátima Lopes proclama que as suas gamas são “100% originais, 100% pele e 100% fabricadas em Portugal”. No seu stand, Ana Esteves, dona de duas sapatarias no centro de Bruxelas, confirma: “As pessoas começam a conhecer o calçado português”.  

Para os empresários, Milão é o lugar onde podem mostrar produto, dar conta de uma modernidade que lhes permite reivindicar o estatuto da “indústria mais sexy da Europa” e encontrar clientes. Na sua visita contra-relógio, o ministro perguntou pelos negócios e se alguns deram conta das dificuldades do mercado europeu, quase todos falaram do novo mundo de oportunidades que se abrem na Ásia ou nos Estados Unidos, o que confirma a escassa vocação deste sector para o pessimismo – uma estratégia que a APICCAPS sempre defendeu. Mas sabe-se que o crescimento fulgurante como o que se registou entre 2009 e 2014 não está ao virar da esquina. A digitalização da indústria é por isso um primeiro passo para a reinvenção do sector. “Na APICCAPS sempre tivemos o bichinho da tecnologia”, nota o seu presidente. “O que é preciso é criar uma onda; depois, as coisas reproduzem-se”, acrescenta. 

As novas gerações entram em jogo

Agostinho Marques e Agostinho José Marques, pai e filho, são os donos da Dura. Cristiano Lopes é o representante da terceira geração da Jovan. A indústria do calçado é uma indústria familiar e, nos últimos anos, o poder da nova geração foi fundamental para mudar a face do sector. Orlando Santos é gestor, o irmão é arquitecto, e juntos transformaram a herança familiar na Confortsyst, que deixou de fazer sapatos convencionais e produz calçado de ar moderno e desportivo. “Os valores são os mesmos, mas no resto renovámos tudo”, diz Orlando Santos.

A passagem de testemunho a gerações mais qualificadas foi fundamental para o sucesso do calçado. Mas não explica tudo. “Eles têm mais conhecimento formal, mas têm também uma herança”, diz Manuel Carlos, da APICCAPS. “Os pais tiveram uma vida difícil” e a experiência tornou-os “muito competentes” no domínio da formação de preços, da criação de redes de clientes ou na gestão da política cambial. A esta base, as novas gerações acrescentaram uma visão mais aberta do mundo, mais sensibilidade para o design e uma gestão mais aberta e arrojada. “Foi uma combinação muito feliz”, diz Manuel Carlos. 

* O PÚBLICO viajou a convite da APICCAPS

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