Quem são os precários do Estado
São 116 mil e alguns há anos que trabalham para o Estado com contratos a termo, a recibos verdes ou integrados em programas ocupacionais.
Carla Jorge, 38 anos. Auxiliar de acção médica. Contrato a termo com empresa de outsourcing
“Esse relatório não revela a verdade completa sobre a precariedade no Estado”
Quando Carla Jorge, auxiliar de acção médica do Centro Hospitalar do Oeste, percebeu que o seu caso nem sequer constava do relatório do Governo sobre as situações de precariedade no Estado sentiu que lhe estavam a tirar o tapete debaixo dos pés. Há dez anos que trabalha no Centro Hospitalar do Oeste através de empresas de outsourcing e tinha algumas expectativas quanto à resolução do seu caso e o dos restantes 180 funcionários subcontratados naquela unidade de saúde que serve as Caldas da Rainha.
“Foi a desilusão total. Esse relatório não revela a verdade completa dos casos de precariedade que existem no Estado. Tudo o que é trabalhadores de empresas de outsourcing ficaram fora. Nós exercemos funções permanentes no centro hospitalar há anos, alguns colegas há mais de uma década. Exigimos constar desse relatório”, desabafa. O facto de não constarem no levantamento reduz a esperança de ver a sua situação regularizada: “Não estando lá, a situação é para se manter”.
A situação de Carla, mãe de duas filhas pequenas, resume-se rapidamente. Deixou um emprego permanente num supermercado para fazer um curso de geriatria. Entrou no centro hospitalar em 2006 para um estágio de dois meses. Até meados de 2012 teve vários contratos a termo, alguns celebrados com o próprio hospital e outros com os serviços partilhados do Ministério da Saúde. Em Setembro desse ano, uma grande parte dos assistentes operacionais passaram para a alçada de uma empresa privada que presta serviços ao centro. Carla celebrou contrato com essa empresa para exercer exactamente as mesmas funções. Depois, transitou para outra empresa, teve salários em atraso e está sempre na incerteza se irá renovar ou não.
“Nos primeiros anos tive uma boa experiência”, reconhece. Agora arrepende-se de ter trocado o certo pelo incerto: “Se fosse hoje, não me tinha despedido do supermercado. Tinha melhores condições do que tenho agora”. Carla sabe bem o que é ser precária: “Não podemos programar a nossa vida para o mês seguinte, quanto mais no prazo de um ano; se formos ao banco pedir crédito para comprar uma casa, não nos é concedido; e no Verão não posso marcar mais do que seis dias de férias, enquanto os colegas [que são funcionários públicos] podem marcar 11”. Já para não falar do salário e do horário que também são diferentes.
Rui Brejo, 45 anos. Formador do IEFP. Recibo verde desde 2007.
“Não tenho dúvidas nenhumas de que somos os precários dos precários”
Ser precário é, para Rui Brejo, um peso que cada vez mais lhe custa carregar. Talvez por isso, e porque a idade é um factor que também já pesa, decidiu dar a cara e falar. Licenciado em Filosofia, é um dos 3.888 formadores que tem contrato de prestação de serviços com o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e um dos 400 que tem um horário completo. Há quase dez anos que está nessa situação.
Passou pela Casa Pia de Lisboa como formador, andou por várias escolas do ensino regular como professor contratado do Ministério da Educação e, em 2007, surgiu a oportunidade de entrar como formador para um centro do IEFP na região de Setúbal. Revolta-se quando lhe dizem que os formadores têm contratos de prestação de serviços desde sempre. “Desde sempre não é para sempre”, ironiza, lembrando que tem de responder a uma hierarquia, tem de dar uma média de 30 horas de formação por semana e é avaliado.
A condição laboral em que vive, reflecte-se nas escolhas que faz e nos planos que não tem para o futuro. “O contrato é anual e quando chega ao final do ano é sempre a mesma dúvida. Só fico descansado quando me telefonam, em Novembro ou Dezembro, a dizer ‘passe por cá a assinar o contrato’”, conta este pai de duas filhas.
O conceito de férias e de doença também não existem. Gerem-se de acordo com a boa vontade de quem está à frente dos centros de formação e que tenta resolver os constrangimentos que vão surgindo. Rui mantém a esperança de que “alguém que tenha um bocadinho de sentido de justiça e de ética e olhe para esta situação”. “Não tenho dúvidas nenhumas de que somos os precários dos precários”, lamenta.
“Sinto-me delapidado enquanto pessoa. Trabalho para o Estado desde Novembro de 2007. Não estou a pedir nada que não mereça. Ao menos que nos dêem um contrato a termo”, desabafa.
Celso Sousa, 35 anos. Professor de Matemática e Ciências da Natureza. Está na reserva de recrutamento à espera de colocação
“Uma pessoa tem de aprender a viver com estas limitações”
Celso Sousa, professor de Matemática e Ciências da Natureza, com um mestrado em educação especial. Tem 35 anos e nunca conheceu outro vínculo que não fosse precário. Neste momento, nem sequer faz parte dos mais de 26 mil trabalhadores com contrato a termo resolutivo identificados no relatório que fez o levantamento sobre os vínculos temporários na Administração Pública.
A última vez que deu aulas foi no último trimestre de 2015. Está na reserva de recrutamento à espera de ser colocado para substituir algum colega que fique doente ou de licença parental. Terminou a licenciatura em 2005 e até 2013 conseguiu sempre colocação para dar aulas de Matemática ou de Ciências da Natureza. “Até aí fiquei sempre colocado, umas vezes por nove meses, outras por um ano lectivo inteiro”, relata ao PÚBLICO.
Durante este período, foi chamado para dar aulas em Beja entre Janeiro e Agosto. Como vive na Amadora, deslocou-se para o Alentejo com todos os custos adicionais que isso acarretou. Em 2014 e 2015, voltou à escola por curtos meses para fazer uma licença de maternidade e uma substituição de baixa por doença. Daí em diante, a situação começou a complicar-se. Em 2016 não apareceu nenhuma substituição para fazer.
Até ao final do ano passado, trabalhou em vários centros de explicações. Desistiu. Ganhava 3,5 euros por hora, a recibos verdes, e o dia prolongava-se pela noite dentro. A situação laboral em que se encontra, diz, “é castradora” e “acaba por pesar nas decisões e faz adiar alguns projectos” relacionados com a sua vida pessoal, que só não é mais instável porque a mulher tem um emprego estável. “Tenho casa própria, por causa da minha mulher. Se fosse por minha iniciativa não daria. Pedir um empréstimo está fora de questão”, reconhece. “A pessoa tem de aprender a viver com estas limitações”, afirma Celso, que se recusa a desistir: “Ainda estou na fase em que quero fazer o que gosto”.