A “guerra escondida” da Ucrânia voltou para testar Trump
Os piores combates em vários meses no Leste no país coincidiram com o telefonema entre o novo Presidente dos EUA e Vladimir Putin.
Quando pouco o fazia prever, a violência regressou à linha da frente no Leste da Ucrânia. Os combates entre o Exército e as forças rebeldes na semana passada fizeram mais de 40 mortos, deixando uma cidade sem electricidade nem água, muito próxima de uma crise humanitária. O reacendimento do conflito que opõe as autoridades ucranianas e os grupos separatistas pró-russos é interpretado como o primeiro teste à nova Administração norte-americana, mas atirou para mais longe as perspectivas de uma solução.
Andreas Umland, investigador do Instituto de Cooperação Euro-Atlântica em Kiev, nota, em declarações ao PÚBLICO, a “coincidência interessante” entre o agravamento dos confrontos perto da cidade de Avdiivka e o telefonema entre o Presidente dos EUA, Donald Trump, e o seu homólogo russo, Vladimir Putin. O Ministério da Defesa ucraniano disse ter apenas respondido a “provocações” por parte das forças rebeldes, acusando-as de “abrir fogo sobre áreas residenciais”.
Vários relatos dão conta, porém, de que por trás da subida de tom dos confrontos estiveram pequenos avanços das duas partes nas semanas anteriores. “As unidades ucranianas recuperaram o terreno que perderam em 2015 e portanto aproximaram-se dos nós logísticos controlados pelos separatistas”, conclui um relatório do Instituto para o Estudo da Guerra, com sede em Washington. As forças separatistas também fizeram avanços para a “zona de ninguém”, em violação das disposições do Acordo de Minsk que estabelece um cordão de 30 quilómetros de largura entre as zonas controladas pelo Exército e pelos grupos pró-russos.
O ataque em Avdiivka não constituiu, porém, uma ofensiva de grande magnitude, ao contrário de outras, como a tomada de Debaltseve pelos separatistas em Fevereiro de 2015, que obrigou o Governo ucraniano a aceitar os termos da segunda versão do Acordo de Minsk. Ambos os lados parecem ter razões para fazer subir as tensões na linha da frente da guerra neste momento. “Os russos – com planeamento e antecipação – responderam de forma visível e desproporcional neste preciso momento para testar as reacções ocidentais”, disse ao Financial Times o analista da Chatham House James Sherr.
Num artigo de opinião recente, o membro do Instituto Carnegie, Balasz Jarabik, diz que a “Ucrânia está a usar o reacendimento no Donbass [nome pelo qual é conhecida a região ocupada pelas forças separatistas] para chamar a atenção para o papel escondido da Rússia na guerra – uma táctica que funcionou no passado”.
Fora do radar
O deputado do partido pró-europeu Pátria (Batkivshchina), Alexei Riabchin, reconhece que “na Europa, esta é uma guerra esquecida”. “Com a crise dos refugiados e as eleições dos EUA, a Ucrânia saiu do radar europeu, mas a agressão russa continua a existir”, disse o deputado ao PÚBLICO, por telefone, a partir de Kiev.
Em Washington, a reacção oficial seguiu a linha da Administração anterior. O Departamento de Estado emitiu uma nota em que expressava “grande preocupação” pelo agravamento da tensão. A embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley, defendeu a manutenção das sanções contra a Rússia e exigiu o regresso à Ucrânia do controlo sobre a península da Crimeia – anexada em 2014 pela Rússia. Num encontro privado, Trump garantiu à ex-primeira-ministra ucraniana, Julia Timochenko, que as sanções são para manter.
Mas numa entrevista à Fox News, Trump voltou a trazer sombras para as relações entre os EUA e a Ucrânia, ao expressar dúvidas quanto ao apoio da Rússia aos grupos rebeldes. “Não sabemos exactamente o que são. Serão sem controlo?”, questionou o Presidente norte-americano.
O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, disse que a posição de Trump constitui um “salto grande e qualitativo” em relação ao tempo de Barack Obama. A NATO e a União Europeia – e a Administração Obama – acusaram o Governo russo de apoiar com soldados, armas e dinheiro os grupos separatistas do Leste e chegaram em várias ocasiões a divulgar imagens de militares das Forças Armadas russas em combate na Ucrânia. O Kremlin diz que os soldados identificados eram apenas “voluntários”.
Os combates são mais uma prova da fragilidade do cessar-fogo previsto pelo Acordo de Minsk, em vigor há dois anos, mas que quase não tem nenhum efeito prático. Riabchin diz que manter o acordo é “chover no molhado”, por já se ter provado que falhou. A ideia que circula neste momento nos corredores do Parlamento ucraniano é a mudança no formato em que têm decorrido as negociações, mediadas pela Alemanha, França e Rússia, alargando o leque de participantes aos EUA, Reino Unido e Polónia, por exemplo, explica Riabchin.
“Não conheço pessoas em Kiev que sejam contra uma mudança do formato”, observa Umland. Porém, o grande obstáculo, diz, é a falta de interesse entre os governos potencialmente participantes em integrarem negociações deste género. Progressos na aplicação do Acordo de Minsk parecem continuar dependentes de Moscovo. “Se Moscovo estiver interessado em livrar-se das sanções e voltar a ter relações comerciais com a União Europeia, as coisas podem acontecer muito rapidamente. Mas, para já, o Kremlin ainda aguarda os efeitos da eleição de Trump e das eleições na UE”, conclui o investigador.