O Anjo da pornografia
O livro do escritor até tinha um certificado que lhe garantia as virtudes e o louvava por bom comportamento, mas as mães do Pedro Nunes, argutas, descobriam nele pecados irreparáveis.
Sempre que sobe aos palcos erguidos para as paradas do louvor e da glória da literatura e de quem a escreve, Valter Hugo Mãe distingue-se da maior parte dos seus pares e é recompensado por isso: desce com as suas asas imensas ao vasto espaço do Reino, espalhando a esperança numa Jerusalém Celeste; fala como um mensageiro e guardião do Verbo; conforta quem sofre de solidão espiritual; administra o bem, a beleza e o conforto aos desvalidos. E sempre entendeu estas tarefas como uma missão própria do escritor. Ele ganhou por isso a imagem de Anjo – o Anjo da literatura, às vezes comediante e agora mártir. Imaginamo-lo a escutar a exortação do Apocalipse apócrifo de Paulo: “Porque havemos de ficar com os pecadores?”. E a responder, pensando em Caxinas, de onde veio para o mundo: “Com os pecadores, às vezes; com os pescadores, sempre”. Abstenham-se os leitores maliciosos de pensar que ele faz alusão a uma antiga e inspiradora aliança entre pecadores e pescadores. Tal hipótese - de perdição ou salvação, quem quiser que decida – faria de Caxinas uma representação abreviada da enorme, intacta e eterna Sodoma.
Descendo da hierarquia angelical, constituída por anjos, arcanjos, querubins e serafins, Valter Hugo Mãe parecia um desses mensageiros celestes “que aproximam Deus de nós”, como disse o poeta de um outro mar, Umberto Saba. De repente, porém, desfizeram-se as aparências e o anjo revelou a sua face de demónio. A proeza de ver um escritor libertino travestido em Condessa de Ségur não se deveu aos críticos e jornalistas, gente tão dada à angelologia que jamais poderia suspeitar do Valter e do seu daimon. Deveu-se às mães do Pedro Nunes (por extenso: as mães dos alunos da Escola Secundária Pedro Nunes), essas sim, as maiores exegetas de O Nosso Reino, o livro do Anjo agora caído, aprovado pela Eclésia decisora das virtudes literárias e morais que a Escola deve cultivar. É aliás para cumprir o mandamento da moral sem mácula e do angelismo sem demónio que a Eclésia deu também a sua unção a O Meu Livro das Finanças, do admirável cónego e economista César das Neves, professor numa universidade cujo vice-reitor é um padre a quem está prometido: hoje és poeta, amanhã serás papa. Por causa do alvo apelido, o professor e doutrinador das Neves foi cunhado por gente sem gosto nem educação como “abominável”.
Ao descobrirem no Anjo o Demónio, ao lerem num livro cheio de ecos bíblicos a ignóbil literatura fescenina, ao verificarem que o Anjo tinha sexo, as Mães do Pedro Nunes propiciaram, sem querer, um lugar mais justo a este falso membro da hierarquia celeste, até então encarregado de ofícios administrativos e burocracias, como cabe a todos os anjos, segundo dizem os estudiosos da genealogia teológica da máquina governamental e da economia. Gritam indignadas as mães do Pedro Nunes, algumas com marcadores de tinta na mão para rasurarem O Nosso Reino: há algo no Valter – Hugo, por analogia, e Mãe por antífrase - que não é nada canónico, não é possível vê-lo como guardião e executor das ordens de Deus. E o Valter, soltando risos demoníacos: “Oh Mães do Pedro Nunes, julgavam que eu era pasto para a vossa angelologia? Queriam-me escritor para entreter a beatitude contemplativa que prescreveis aos vossos filhos? Pensam que as Caxinas é uma travessa da Lapa? Tomem lá pornografia!”. E a seguir começa a recitar-lhes The Necessary Angel do Wallace Stevens: “I am the angel of reality/ Seen for a moment standing in the door”. O Valter, que leu Breton e Alain Robbe-Grillet, sabe muito bem uma coisa que as Mães do Pedro Nunes nunca saberão: que a pornografia é o erotismo dos outros.