“Tudo o que eu faço são naturezas-mortas”
Nathalie du Pasquier, que em tempos foi designer com o grupo Memphis, de Milão, é hoje artista plástica e assina a sua primeira individual em Portugal.
“Isto aqui é o meu corpo:” diz Nathalie du Pasquier com um largo sorriso, “a minha cabeça, as minhas pernas e o meu coração”. A artista aponta para três grandes caixas abertas, penduradas na parede da Kunsthalle Lissabonn, repletas de formas pintadas de cores vivas. Perguntamos-lhe porque é que o coração inclui a representação de uma janela aberta sobre uma paisagem. A artista ri-se e não responde.
Nathalie du Pasquier, que apresenta desde há dias a sua primeira exposição individual em Portugal, é uma artista com nome bem estabelecido no meio artístico internacional. Vive em Milão desde o fim dos anos 70, altura em que conhece o designer George Sowden. Pouco tempo depois, eram ambos convidados por Ettore Sottsass para integrar o Grupo Memphis, um colectivo de designers que se dedicou a criar, com enorme sucesso, mobiliário e objectos para o mercado internacional, de acordo com uma estética que recebia na altura o nome de pós-modernismo. Nathalie du Pasquier, neste grupo, foi autora de móveis e sobretudo daquilo a que chamava “superfícies planas” – têxteis, tapetes, laminados de plástico – que ainda hoje, pontualmente, é possível descobrir em sites de leilões online de design vintage, que atingem cotações astronómicas com os coleccionadores da especialidade.
Em todos esses produtos se nota um gosto evidente pela apropriação dos têxteis tradicionais africanos, por exemplo, mas também pelo geometrismo e as cores ácidas tão em moda na vida quotidiana da década de 50. Na década de 80, quando os imaginou e produziu, os tecidos assinados por esta criadora conheceram um sucesso enorme, tendo chegado a ser usados inclusive em peças de vestuário de colecções de alta costura.
Mas tudo isto pertence ao passado. Em 85 Sottsass deixou o grupo Memphis e este acabou por dissolver-se em 1991. Entretanto, Nathalie du Pasquier, que sempre tinha desenhado, assumiu-se como pintora e passou a dedicar-se por completo às artes plásticas. Contudo, nunca saiu de Milão.
Arte móvel
Perguntamos-lhe a razão pela qual se instalou primeiro em Itália. Responde que, na verdade quando fez 18 anos decidiu ir viajar. “Nasci em Bordéus”, recorda, uma cidade costeira muito importante, que prosperou graças ao comércio com as Índias Ocidentais. Os nossos barcos iam dali para África, onde carregavam escravos, e daí seguiam para as Américas. Vinham de lá com açúcar e toda a espécie de produtos exóticos que depois eram vendidos na Europa. No século XVII Bordéus era mesmo a cidade francesa mais rica de todas. Mas bom, quando eu lá vivi já a sentia como pouco estimulante para uma jovem adulta. Foi por isso que decidi viajar.” De França, foi para África, onde visitou países da costa ocidental, e daqui para Roma, onde arranjou um trabalho a tomar conta de crianças. Não gostou da cidade, achou-a “sufocante”. Em Milão, pelo contrário, começou a trabalhar rapidamente como designer e nunca mais de lá saiu. “Só vou a França duas ou três vezes por ano para visitar a família. Às vezes passo meses sem falar francês, e volta não volta tenho a impressão de que me esqueci da língua materna.”
Mas a verdade é que é preciso muito mais do que um semi-exílio voluntário de anos para se esquecer a língua que se aprendeu em criança. Voltamos à exposição. As três grandes caixas parecem repletas de objectos tridimensionais – são volumes que se conjugam sobre a superfície de cada peça como o resultado de uma colagem minuciosamente pensada. Os títulos vêm em italiano: de uma Collezioni private, o título destas peças feitas de propósito para a exposição, incluem La mia testa, Il mie gambe e Il mio cuore, os nomes de cada uma das caixas de que Nathalie du Pasquier já falava anteriormente.
Ora, se há um indício de auto-representação neste contexto, trata-se de algo que passa pelo conceito de objecto, de colecção, já que as caixas, como um relicário, um cofre, uma mala de viagem, possuem um fecho e podem ser transportadas. De certa forma, estamos perante uma arte móvel que se define também por oposição à história do objecto escultórico, que quanto maior, mais pesado e mais difícil de mover era, maior valor simbólico possuía. Esta colecção privada, ou particular, de Nathalie du Pasquier está tão próxima das colecções prestigiadas de artes decorativas feitas um pouco por toda a Europa por apaixonados entusiastas do design como da secção de pintura do século XVIII do Museu do Louvre. Mas está longe, muito longe do núcleo de escultura greco-romana do mesmo museu. Encontramos-lhe algum parentesco com as “boîtes en valise” que Duchamp construiu com pequenas réplicas das suas obras, e de que a Colecção Berardo possui um exemplar. De certa forma, Nathalie du Pasquier nunca abandonou a sua ligação ao objecto, mesmo que agora faça sobretudo pintura e desenho. O seu trabalho concretiza a hibridização bem contemporânea entre a pintura e outras disciplinas artísticas, sobretudo aquelas que relevam de classificações hierárquicas hoje ultrapassadas. Se o design em tempos não possuiu tanto prestígio como a pintura, a escultura ou a arquitectura, esse anátema está hoje mais que ultrapassado.
Objectos inanimados
A exposição, contudo, tem outras peças: um conjunto de desenhos a lápis de cor sobre papel que também encenam esse objecto, agora já plenamente conceptual, que encontrávamos nas Collezioni private. A série intitula-se Stanze Grigie per Lisbona e, observando cada desenho com atenção, detectamos aqui uma mesa, além algo que parece um livro, ou um vaso, ou uma taça. Em todas as obras, existe uma vontade óbvia de criar formas nítidas sobre o fundo branco da folha de papel, e de convocar a profundidade e a perspectiva através de uma gama de cinzas libertos da obrigação de modelar a forma. Mas trata-se apenas de uma convocação, de uma demonstração da artificialidade do método perspéctico de representação dos objectos tridimensionais através da desconstrução dos seus resultados. Estas imagens estão aparentemente muito próximas do desenho geométrico tal como ele é entendido numa prática de tipo industrial. Mas, ao mesmo tempo, sombras e relevos autonomizaram-se, adquirindo uma identidade própria que serve o género da natureza-morta.
“Tudo o que eu faço, no fundo, são naturezas-mortas”, diz-nos a artista. “Gosto muito do cuidado colocado na associação das peças para formar uma composição de objectos inanimados, e passo tempos infinitos a estudar como o modernismo tratou este tema.” A conversa deriva quase imediatamente para os movimentos e os artistas que, durante a primeia metade do século XX, pintaram naturezas-mortas, e sobretudo para os artistas do Novecento italiano. O Novecento – literalmente, significa século XX – foi um movimento que advogou um dos inúmeros “regressos à ordem” que surgiram pela Europa entre as duas guerras mundiais – ou seja, depois do frenesi vanguardista. Admirava a Antiguidade Clássica, e casou-se bem com os propósitos do fascismo italiano que, na altura, também tinha chegado há pouco ao poder. A certeza de encarnarem o espírito do presente, e mesmo a verdadeira modernidade – que passa, paradoxalmente, pela revalorização dos valores “eternos” de uma Roma mítica que apenas existiu na imaginação – levou artistas tão importantes como Carlo Carrà, Sironi, Morandi e mesmo o tardio De Chirico, aqueles que lograram ultrapassar as fronteiras da arte moderna italiana, a procurar uma expressão elegante e decorativa no trabalho plástico que realizavam. “Milão está cheia de arte desta época. É uma cidade lindíssima, moderna, cheia de coisas que me interessam. Basta-me andar na rua e ver bem o que me rodeia.”
Nathalie du Pasquier fala ainda da Art Déco dos anos 20 e 30; e encontramos de facto correspondências entre o seu estilo pessoal e a linha bem definida deste estilo decorativo que teve também alguma expressão em Portugal. Pensemos, por exemplo, no trabalho do açoreano Canto da Maya, que passou largas temporadas em Paris e foi decerto o mais exímio praticante da escultura Art Déco no nosso país. Por agora, a artista franco-milanesa está encantada com os azulejos modernistas portugueses. Andou a visitar as estações de metro decoradas por Maria Keil, e diz que tem que voltar para estudar melhor o trabalho plástico da pintora portuguesa.