A política que vai para o frio
O Pólo Norte está a derreter, e ao derreter revela um tabuleiro geopolítico que não fica a dever em nada ao “Grão Jogo” imperialista dos tempos passados.
O mundo do pós-guerra era o do Atlântico Norte. Obama tentou operar uma basculação para o Pacífico. Mas há um terceiro oceano de que todos se esquecem. E não, não é o Índico. É aquele que pouco aparece nos mapas, porque acaba quase sempre cortado quando tentamos fazer caber a esfera do planeta num retângulo: o Ártico.
O Ártico pode não aparecer muito nos mapas, mas em contrapartida está bem visível nos globos terrestres. Se tiver um por perto, vá lá meter o dedo em cima do Pólo Norte. Aí está o Ártico. O mais pequeno dos oceanos. O menos profundo. E o menos importante — até agora. Lá está aquela mancha branca de gelo e neve, rodeada de todas as grandes potências. Lá está o hemisfério Norte quase como num anfiteatro, virado para o Ártico. O mundo fica mais pequeno a partir dali. Para quem queira, o Ártico poderá ser o centro do planeta, como em tempo o Mar Mediterrâneo ou o Oceano Índico o foram. E há quem queira: Vladimir Putin e o novo homem-forte da diplomacia dos EUA, Rex Tillerson.
Pode todo o mundo andar distraído, mas estes dois homens não. As riquezas do Ártico são imensas. Putin, através do gigante petrolífero russo Rosneft, e Tillerson, quando era presidente da Exxon (de que ainda detém mais de 200 milhões de dólares em ações), assinaram uma série de negócios para explorar poços de petróleo no Ártico, que ficaram agora mais acessíveis devido ao aquecimento global. Corriam os anos de 2012 e 2013 e estes negócios eram essenciais para ambos os homens.
Mas em 2014 aconteceu uma coisa importante: Putin invadiu a Ucrânia, anexou-lhe a península da Crimeia, e pôs tropas irregulares nas repúblicas fantoches que inventou no leste ucraniano. A União Europeia e os EUA reagiram impondo sanções à Rússia e impedindo companhias ocidentais de fazerem negócios com os oligarcas russos e o círculo mais próximo do Kremlin. Os negócios entre a Exxon e a Rosneft ficaram mais congelados do que os gelos polares. Só que os gelos polares, esses, continuaram derretendo.
Em novembro passado, Donald Trump foi eleito Presidente dos EUA. De imediato se começou a falar de Tillerson — a quem Putin tinha dado a mais alta condecoração russa para estrangeiros — como possível chefe da política externa americana. Falou-se também, mas um pouco menos, de levantar as sanções à Rússia, coisa que será feita discretamente e a seu tempo. Porém, ainda antes que Rex Tillerson ascendesse a secretário de Estado, deu-se um interessante mistério. Na maior privatização desde os anos 90, a Rússia de Putin vendeu 19,5% da Rosneft. E ninguém sabe a quem. A suposta compradora, uma companhia de Singapura alegadamente detida por investidores da Suíça e do Qatar, esconde os seus reais proprietários através de uma firma sediada nas Ilhas Caimão. O costume.
O que não é costume é o aquecimento global ir abrindo novas rotas pelo Ártico que durante milénios estiveram inacessíveis. O transporte de mercadorias, a geopolítica e a estratégia militar vão mudar em consequência. E a proximidade entre os EUA e a Rússia, bem como a rivalidade de ambos com a União Europeia e o Canadá (cuja nova ministra dos Negócios Estrangeiros, antes negociadora do acordo comercial UE-Canadá, está na lista negra de Moscovo e proibida de entrar na Rússia), quase que se assemelha a uma espécie de uma nova “entente”, como se dizia há cem anos dos entendimentos entre potências: chamemos-lhe a entente ártica. Mesmo não tendo a UE fronteiras com o Ártico, porque nem a Noruega nem a Islândia são estados-membros, a Área Económica Europeia confina com esse pequeno oceano para o qual — digo eu — vamos ter de passar a olhar com mais atenção nos próximos tempos. É que há demasiadas taras e manias da administração Trump — do petróleo à Rússia e à negação das alterações climáticas — que apontam como uma bússola para onde as bússolas costumam apontar: para o Norte.
O Pólo Norte está a derreter, e ao derreter revela um tabuleiro geopolítico que não fica a dever em nada ao “Grão Jogo” imperialista dos tempos passados. Por isso, quando se fala em descongelar as relações com a Rússia, entenda-se por favor esse “descongelar” num sentido muito literal.