A arte da interrupção

Ao escrever sobre obras de artistas contemporâneos, Maria Filomena Molder entra em questões teóricas fundamentais relativas à crítica.

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Maria Filomena Molder move-se de maneira livre, estabelecendo relações que relevam de um modelo interpretativo e não de um modelo histórico Enric Vives-Rubio

Rebuçados Venezianos parece um título muito pouco provável para um livro, bem volumoso, que reúne trinta textos, a maior parte deles escritos para catálogos de exposições, sobre obras de artistas contemporâneos, quase todos portugueses. Num texto sobre uma exposição de Luísa Correia Pereira (1945-2009), uma artista muito singular e pouco conhecida, ficamos a saber de onde vêm estes “rebuçados venezianos”; e uma nota inserta na contracapa esclarece: “O título é uma homenagem à pintora Luísa Correia Pereira”.

Singular é também o discurso de Maria Filomena Molder sobre as obras de arte: há nele o treino e a armadura da disciplina filosófica, mas há uma forma de pensar que parece antes satisfazer aquele requisito hofmannsthaliano de um pensamento sem conceitos. Quando os filósofos escrevem sobre arte, quase sempre seguem o ideal dos conceitos. Nos casos mais extremos, é como se as obras de arte fossem uma ilustração ou representação de filosofemas. Esse discurso pode ser muito interessante e ter um grande alcance, mas serve um outro fim que não é o de revelar a vida intensiva das obras  —  missão que cabe ao discurso crítico. Que a experiência estética é um aspecto do não-conceptual, é uma questão cheia de consequências que surge explicitada várias vezes ao longo deste livro. Eis uma passagem, retirada de um texto sobre Louise Bourgeois, onde se fala precisamente da “irredutibilidade entre arte e filosofia” : “As palavras à procura dos seus conceitos, com que lida o filósofo, embatem na estranheza da obra de arte, um ser que está encerrado em si próprio, que guarda na sua visibilidade um mistério, um ser enigmático que não faz perguntas e que não responde a nenhuma pergunta”.  Quem conhece a obra filosófica de Maria Filomena Molder sabe que a sua obediência a esta irredutibilidade tem uma correspondência no seu estilo, se entendermos o estilo como a parte misteriosa e “artística” da escrita filosófica: um estilo que está de acordo com a exigência de resgatar a “poética” imanente à linguagem da filosofia.

O seu discurso crítico excede, por isso, a pureza dos géneros que ele solicita e move-se entre estes dois pólos, como se pode perceber desde logo nos títulos de muitos dos textos deste livro: o tético e o poético, a imagem e a ideia, a criação e a interpretação, o logos conceptual e a inconceptualidade da metáfora. O que não obsta a que a referência kantiana tenha uma grande importância no trabalho de Maria Filomena Molder, mesmo se Kant forneceu à filosofia uma terminologia intrincada e um rígido vocabulário conceptual. A imagem e a metáfora, não como formas deficitárias, mas como formas genuínas de pensamento a par da conceptualização, respondem a exigências metodológicas, especulativas e interpretativas. Estão no centro deste discurso crítico e ligam-se ao que, em termos husserlianos, se chama o “mundo da vida”.  Esta relação com o mundo da vida tem a ver com o próprio estatuto da metáfora enquanto “maneira de se voltar para o mundo, de se orientar nos confrontos com a realidade”, escreve Giorgio Colli, um filósofo italiano que Maria Filomena Molder colocou há muito no seu panteão. Não há tema mais apto a equívocos e a pequenas e grandes mitologias do que este: a relação da arte com a vida. Num dos seus textos, Maria Filomena Molder faz esta afirmação, que serve bem de aviso à navegação: “Nenhuma semelhança fará com que a arte se converta em vida”. É no início de um texto onde começa por comentar a teoria da semelhança, de Walter Benjamin. Mas num outro texto, a questão surge modalizada de outra maneira e mediada por um conceito que Benjamin desenvolve num ensaio sobre As Afinidades Electivas, de Goethe. Trata-se do conceito de Ausdruckslose, de inexpressivo.  Com esse conceito, Benjamin faz uma crítica do belo. Inexpressivo é o que na arte interrompe a bela aparência e a subjectividade expressiva e interrompe a ideologia estética da unidade e da totalidade; é o que abre a obra ao abismo da sua imanência e da pura representação de si mesma; e é ainda o que na obra suspende a vida que nela se agita, para que ela continue a ser arte. O discurso crítico, tal como Maria Filomena Molder o entende, não consiste em desvelar o que na obra se esconde, mas em expô-la exactamente no seu segredo.

Sabemos muito bem que  a sedução que exercem a escrita e as conferências de Maria Filomena Molder sobre um auditório muito mais vasto do que o universitário deve-se ao facto de ela ocultar o jargon mais árido da filosofia, não para entrar nos territórios degenerados da pop-filosofia, mas para exercer um modo de escrever e de pensar que procura aquilo a que Walter Benjamin chamava “o hieróglifo objectivo das coisas”. Trata-se de uma escrita que tem muitas características da escrita ensaística, em que as imagens e metáforas fixam as intensidades e põem o pensamento em movimento de uma maneira que não obedece a uma ordem argumentativa.

Fácil é perceber que Maria Filomena Molder, ocupando-se nestes textos de arte contemporânea, não entra nos protocolos e nas preocupações de grande parte do discurso crítico sobre a arte contemporânea  —  esse discurso que tende a fetichizar o “contemporâneo”, transformando-o numa categoria. Quando lemos os textos reunidos em Rebuçados Venezianos, somos arrastados para uma a-historicidade, ou então para uma historicidade específica das obras de arte que não é dada por nenhuma história de arte (importa não esquecer que a autora deste livro se ocupou longamente do pensamento morfológico de Goethe). É certo que uma das características do discurso filosófico e crítico de Maria Filomena Molder é o de estabelecer conexões capazes de aproximar os extremos da evolução histórica, através de um modelo interpretativo e intensivo de leitura. Essa maneira de trazer para o presente um Platão ou toda a sabedoria grega, ou de fazer entrar uma obra de arte contemporânea na mesma constelação de um quadro renascentista ou de um poema romântico é um dos motivos que tornam o discurso de Maria Filomena Molder tão poderoso e sedutor. Mas, no que diz respeito aos textos reunidos neste livro, há uma razão teórica muito forte para este modo de leitura “intemporal”, e essa razão fica parcialmente esclarecida quando, num texto, é referida uma célebre carta de 9 de Dezembro de 1923, que Walter Benjamin enviou ao seu amigo Florens Christian Rang, dizendo-lhe que tinha chegado à conclusão de que “não há história de arte” e de que “inserir a obra de arte na trama da vida histórica não abre nenhuma perspectiva sobre a sua natureza mais profunda”. Simplificando a complexa questão que Benjamin desenvolveu nesta carta, digamos que ela se insere num pensamento da história que rejeita a forma evolutiva e num pensamento da historicidade da arte que desemboca sempre em algo que é apenas contingente (por exemplo, história dos autores e a relação com os acontecimentos empíricos) e deixa de parte o essencial. Seguindo esta lição, Maria Filomena Molder move-se de maneira livre, estabelecendo relações que relevam de um modelo interpretativo e não de um modelo histórico. À semelhança, aliás, da liberdade com que se move na filosofia, indiferente às arrumações a que esta é submetida pelo esquema histórico. Mas esta liberdade é uma arte profunda da leitura e não uma renúncia à exigência ética da leitura.

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