Como os EUA vão ter mais inimigos do que nunca (ou a história de Mustafa)
Mal a ordem de Trump correu mundo, Mustafa viu a raiva crescer à sua volta, entre Síria e Iraque: “As pessoas já odeiam a política americana, assim vão odiar muito mais. Os EUA terão mais inimigos do que nunca.”
1. Trump não é os Estados Unidos, diz Mustafa Ahmad. “Muita gente lá está contra” esta ordem para impedir sírios e cidadãos de mais seis países muçulmanos de entrarem nos EUA: milhares manifestaram-se em aeroportos, advogados trabalharam como voluntários, uma juíza travou deportações. Mas, mal a ordem correu mundo, Mustafa viu a raiva crescer à sua volta, entre Síria e Iraque: “As pessoas já odeiam a política americana, assim vão odiar muito mais. Os EUA terão mais inimigos do que nunca.”
2. Mustafa, 32 anos, arqueólogo, é de Alepo, Síria. Estava a fazer o mestrado em Damasco quando começou a guerra. Em 2012 foi aceite para um doutoramento na Universidade de Lyon, França. As autoridades sírias rejeitaram a sua saída, precisavam de soldados para o exército de Assad. Então Mustafa e a mulher fizeram 17 horas de autocarro pela “estrada mais longa”, através de Palmira e Raqqa, zonas já controladas por jihadistas, até à fronteira com a Turquia, dominada pelos opositores ao regime. Nesse tempo pré-ISIS era a forma possível de saírem clandestinos. “Continuei na Turquia o tempo suficiente para conseguir tirar de Alepo a minha família, que estava em perigo.” Pai, mãe, irmão com mulher e filha, e irmã, seis pessoas ao todo. “Não queria que ficassem em campos de refugiados, e eles não queriam ir para a Europa, a Turquia estava mais próxima do modo de vida deles.” Recomeçaram tudo em Mersin, uma cidade costeira do sul, não longe da fronteira com a Síria. “Hoje falam turco, a minha irmã é psicóloga, o meu irmão dirige uma escola de sírios.” Quando a família se achou a salvo, Mustafa seguiu enfim para Lyon. Até aí o seu doutoramento centrava-se na cerâmica de um ponto perto de Alepo, portanto tinha de mudar de região e objecto de estudo. Jerusalém, Beirute ou Amã eram opções possíveis, mas ele escolheu o Curdistão iraquiano: Erbil e Sulaymaniah. “Porque é uma região nova para os académicos e não há assim tanta gente lá a estudar cerâmica do período islâmico.”
3. Tanto não há que hoje Mustafa é o perito em cerâmica islâmica de nada menos do que seis esquipas internacionais que escavam em Sulaymaniah, incluindo uma do British Museum, outra do Smithsonian, mais franceses, alemães, portugueses da Universidade de Coimbra (através dos quais me cruzei com ele, quando acompanhei uma escavação lá, em 2015). Além dos americanos do Smithsonian (um dos maiores complexos de museus e investigação do mundo), o projecto dos arqueólogos portugueses é partilhado com a Universidade de Pensilvânia. Gente e fundos americanos que agora, depois da ordem de Trump, ficam sem saber para onde ir, com que contar. Nesta tarde de domingo em que conversamos por wahtsapp, Mustafa ainda não falou com nenhum dos americanos, mas não vê como ficarão imunes às ondas de choque.
4. “Toda a gente aqui está a falar do assunto, em todas as casas, todos os ambientes. As pessoas seguem isto como um filme, à espera do passo seguinte de Trump. O consulado Americano disse aos iraquianos para não viajarem para os Estados Unidos. Um amigo que ia embarcar no aeroporto de Erbil não foi autorizado. As pessoas que tinham feito reservas ou comprado bilhetes estão a receber o dinheiro de volta. Muitos sírios e iraquianos estão a reconsiderar os planos que tinham. Sinto a zanga a crescer, e imagino que o mesmo acontecerá aos americanos, em breve serão banidos daqui. Isso afectará projectos americanos nesta região.” Os Estados Unidos perderão aqui e lá dentro, antecipa Mustafa. “Um professor sírio não vai poder entrar lá, portanto eles vão perder as pessoas mais qualificadas. Ao mesmo tempo, o Canadá anunciou que está aberto a todas as pessoas que os EUA banirem, então o Canadá vai ter mais gente qualificada.”
5. Com o argumento da luta contra o terrorismo, Síria, Iraque, Irão, Líbia, Sudão, Somália e Iémen são os países que Trump baniu por um prazo de pelo menos três meses (e refugiados sírios por prazo indeterminado). “Não baniram os do Golfo, nem a Arábia Saudita, porque precisam do dinheiro deles, do petróleo”, diz Mustafa. “É ridículo.” Golfo e Arábia Saudita, aliados que vêm de trás. Mustafa nem absolve Obama, nem o confunde com Trump. “O envolvimento de Obama no Médio Oriente não foi bom, fez inimigos. Mas havia uma humanidade ali, percebíamos que ele estava interessado em pessoas. O Obamacare é uma prova disso. Trump é um homem de negócios, um homem de dinheiro. São muito diferentes.”
6. Se pudesse ter escolhido, Mustafa estaria a escavar o seu pedaço de Síria, lá junto de Alepo. E não estaria há tanto sem ver os pais e irmãos, porque a Turquia mudou as regras de acesso para sírios depois da pressão internacional por ter deixado passar jihadistas para as fileiras do ISIS. Mustafa está à espera de nova legislação para ir lá visitá-los. Não tem falta de trabalho, e além das equipes internacionais abrem-se lhe todas as hipóteses no Curdistão iraquiano, porque é um curdo da Síria, também fala curdo. “Quero acabar o doutoramento e talvez ensinar na universidade de Sulaymaniah, ou outra. Há muito trabalho para fazer aqui.” Mas, enquanto conversamos, a batalha por Mossul prossegue um pouco a Norte, o ISIS ainda tem a parte ocidental da cidade, a coligação de “peshmergas” (combatentes) curdos, tropas iraquianas e aliados internacionais ainda não venceu os jihadistas. E que vai acontecer a este caldeirão, a que Mustafa chama “um jogo”, bem mais complexo de resolver do que os projectos de arqueologia que envolvem americanos na região? “Assad já está com a Rússia, os curdos precisam da mão americana.” A mão americana está mesmo muito presente, desde a imensa Universidade Americana de Sulaymaniah ao investimento económico e militar. Entretanto, em torno e para Sul, o Iraque é um país partido em vários desde a invasão americana de 2003, a Síria um país semi-desfeito com milhões de refugiados, Donald Trump apenas começou, e essa será a grande batalha interna dos americanos: como provar que Trump de facto não é os Estados Unidos.