Aborto: a pedagogia sem dogmas
A maioria das entidades e cidadãos que participaram na consulta pública do novo Referencial da Educação para a Saúde estão contra a inclusão do tema da gravidez e da sua interrupção voluntária no 2.º ciclo de escolaridade. O referencial foi lançado pelos ministérios da Saúde e da Educação para sugerir às escolas que abordem, sem carácter vinculativo, assuntos como os da saúde mental e prevenção da violência; educação alimentar; actividade física; toxicodependência; afectos e educação para a sexualidade. Claro que nenhum daqueles temas gerou tamanha contestação e petições neste processo de consulta como o último da lista — discutir a interrupção voluntária da gravidez continua a traçar uma linha divisória e irrevogável entre quem se afirma pró-vida e quem se define pró-escolha.
O que propôs o documento sujeito a discussão pública foi, simplesmente, explicar aos alunos as diferenças entre gravidez e a sua interrupção, num contexto mais vasto de “desenvolvimento de uma atitude positiva em relação ao prazer e à sexualidade”. E esperar que os alunos fossem capazes de identificar os diferentes métodos contraceptivos e a sua importância na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e de uma gravidez indesejada. Daqui até sugerir que o Estado está a promover o aborto como “educação sexual” vai uma imensa distância e um grande aproveitamento de sacristia. Os subscritores de uma petição nesse sentido chegam a alegar que “é um verdadeiro absurdo ensinar a crianças que é legítimo e justo matar bebés no ventre materno” ou que não se vislumbra outra intenção senão a de “doutrinar desde a infância, numa acção equivalente às dos regimes totalitários”.
Dez anos depois do referendo que aprovou a sua despenalização, já era tempo de conseguirmos discutir o assunto sem moralismo e com melhores argumentos. A IVG é um indicador de saúde pública que traduz níveis de fertilidade e de acessibilidade à contracepção, a taxa de aborto em Portugal é inferior à média europeia e tem vindo a diminuir ano após ano, a repetição da IVG é inferior à da maioria dos países europeus, e o objectivo da despenalização foi atingido: acabou o encarceramento e a mortalidade materna associada. O que se espera da escola é que alguém habilitado possa fazer o papel, quando tal se justificar, de falar sobre este tema com mais pedagogia do que dogmas. Para o bem de todos nós.