Sem a ajuda do BCE estaríamos como em 2011? “É provável que sim”

Sem a actual ajuda do Banco Central Europeu, o cenário de 2011, quando pedimos ajuda externa, seria novamente provável, defende Vítor Bento.

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Sem ajuda do BCE estaríamos como em 2011? “É provável que sim” Vítor Costa, Sibila Lind, Frederico Batista

Faltam reformas em Portugal que permitam atrair investimento e aumentar o potencial de crescimento, defende o economista Vítor Bento. Uma debilidade que, somada ao facto de não haver convicção do Governo no controlo das contas públicas e à má gestão da União Europeia da crise da zona euro, deixa o país muito dependente do Banco Central Europeu (BCE). Sem a ajuda de Frankfurt, o cenário de 2011, quando pedimos ajuda externa, seria provável, defende o antigo conselheiro de Estado do Presidente Cavaco Silva.

Portugal vai apresentar um défice orçamental que, no máximo, será de 2,3%, vai cumprir a meta imposta por Bruxelas para o défice, temos saldos primários positivos, mas a ideia que transparece é que, sem a ajuda do Banco Central Europeu, continuaríamos em maus lençóis. Em que situação estamos?
Começo pelo lado positivo. A actual solução governativa começou por ser vista como uma improbabilidade, depois, a aprovação do seu primeiro Orçamento era vista como uma segunda improbabilidade, o cumprimento do Orçamento era visto como uma terceira improbabilidade, a aprovação do segundo Orçamento era vista como uma quarta improbabilidade. Mas acabou por superar essas improbabilidades. É um resultado que tem de ser registado pela positiva e há que reconhecer o crédito, nomeadamente por ter conseguido conciliar o radicalismo da componente mais à esquerda da coligação com as exigências que todos apelidamos "Bruxelas".

Agora, também é verdade que foi feito pelo lado fácil. Foi distribuir. Uma das contrapartidas, e a mais improvável de todas, foi o investimento público. É das coisas mais estranhas ver o Governo mais à esquerda que tivemos ser aquele que mais sacrificou o investimento público. Outra contrapartida foi o aumento de impostos, nomeadamente os indirectos. Por último, houve alguma ginástica orçamental — que todos os governos fazem — que permitiu superar 2016, mas vai tornar mais difícil 2017.

Falta fazer o quê?
Não me parece que haja convicção suficiente para pôr as contas públicas em ordem. As coisas vão sendo feitas um pouco circunstancialmente, com a pressão de Bruxelas, mas não há a convicção de que temos de reformar o Estado e de que temos de tornar o Estado sustentável. Mede-se pouco a consequência de termos uma demografia muito desfavorável que já está a pôr, e vai continuar a pôr, problemas distributivos muito, muito grandes. Se não atenuarmos antecipadamente este dilema, vamos viver sempre em tensão e, provavelmente, em degradação.

É um aspecto negativo. Há mais?
Continuamos com uma dívida muito grande e não estamos a conseguir atrair investimento. Dê-se as voltas que se derem, é um facto. Não há investimento. Não há investimento suficiente. Não há atracção de investimento, quer estrangeiro quer nacional, e isso põe em causa o potencial de crescimento do país, independentemente de todas as circunstâncias favoráveis, como é o caso do boom do turismo, que é notável e importante, mas que não chega. Estamos a ter sinais nas contas externas que são preocupantes. O défice da balança comercial sem serviços começa a alargar e vemos a balança de rendimentos a degradar-se, o que significa que na frente externa as coisas começam a degradar-se quando ainda temos um desequilíbrio interno, com o nível de desemprego que, obviamente, tem reduzido, mas que ainda é elevado e que não é socialmente aceitável.  

São esses aspectos que levam a que as taxas de juro da dívida pública continuem a ser pressionadas?
Hoje temos um certo anestesiamento. O BCE tem vindo a anestesiar os mercados, e os mercados vivem inundados de liquidez. Continua a haver um excesso de poupança no mundo face àquilo que seria a necessidade de investimento, o que cria muita liquidez. Mas também cria o perigo de nos podermos anestesiar face ao que nos é exigido. De um momento para o outro, os mercados têm uma mudança temperamental e sofremos as consequências imediatas de uma situação dessas. Desse ponto de vista, a situação é perigosa, porque temos uma dívida externa em geral muito elevada e temos um potencial de crescimento baixo. Isso, para os mercados, é sempre um sinal de alerta, que face a uma mudança de circunstâncias pode ser dramático.

É um beco sem saída? A dívida não nos deixa crescer, e não temos crescimento para resolver o problema da dívida. Não conseguimos aumentar o nosso potencial de crescimento. Porquê?
Uma das coisas que nos é muito desfavorável é a demografia, em vários campos. Porque dá a perspectiva de haver menos população activa e menos potencial de consumo, o que é menos atractivo para o investimento. Depois, continuamos a recusar reformas fundamentais para tornar a economia mais operacional. Houve este boom redistributivo com a reversão de medidas da chamada "austeridade", fala-se em rever algumas das reformas que foram feitas, nomeadamente no mercado laboral. Se essa reversão ocorrer, volta a aumentar a rigidez, volta a ser mais difícil o emprego dos jovens. No fundo, volta a defender os empregos dos que estão estabelecidos. Acima de tudo, tira flexibilidade à economia. Temos, ao nível da gestão do Estado, e sobretudo da gestão fiscal, uma instabilidade enorme. Mais grave do que saber se o imposto é elevado ou baixo, é a instabilidade fiscal. A própria sucessão de perdões fiscais não é um incentivo ao cumprimento das regras. Isso também não fomenta uma cultura de disciplina por parte dos próprios cidadãos.

Sem termos a economia a crescer 3% ou 4% ao ano, faz sentido discutir algum tipo de reestruturação de dívida?
Não há uma resposta linear. Se quisermos pôr esse assunto em cima da mesa, a primeira coisa que temos de fazer é convencer os nossos parceiros, os nossos interlocutores, de que mudámos de vida. Que conseguimos olhar para o Estado, programar o financiamento do Estado para que não volte a acumular dívida ao ritmo a que acumulou no passado e que fazemos as reformas necessárias para tornar a economia mais produtiva. Se não fizermos isso, qualquer ideia posta em cima da mesa de reestruturação da dívida é equivalente ao comerciante de carros de segunda mão que põe o contador a zero para enganar o cliente. Aí não vai haver ninguém nessa disposição, a não ser que estejamos numa situação desesperada, o que também não é o caso. Por outro lado, também não podemos deixar de reconhecer que a dívida que temos é da nossa responsabilidade. Foram escolhas nossas. Significa que no passado andámos a distribuir o que não tínhamos e pedimos emprestado para o poder fazer.

Há quem diga que estamos novamente a distribuir o que não temos.
O ponto é esse. Não estamos a ser convincentes.

Sem a intervenção do BCE é exagerado dizer que poderíamos estar numa situação parecida com a que tivemos em 2011?
É provável que sim. Dificilmente as taxas conseguiriam estar no nível em que estão, e a tensão que isso criava, quer directa quer indirectamente, seria grande. Também é verdade que a crise da zona euro foi muito mal gerida e agravou mais os problemas do que os resolveu. Tratámos uma infecção com anti-inflamatórios, aliviaram-se as inflamações, mas o germe da infecção mantém-se.

Porque é que foi feito assim?
A zona euro nunca olhou para a zona de uma forma sistémica. Olhou para a crise, não como uma crise geral, da responsabilidade do conjunto, mas como uma soma de crises individuais, e tratou-as de forma individual, esquecendo os efeitos sistémicos que tinham. Portanto, desse ponto de vista, não resolveu, e isso continua a ser uma vulnerabilidade.

A União Europeia (UE) vive uma contradição insanável desde Maastricht, quando estabeleceu como destino obrigatório de todos os membros da UE pertencerem ao euro. Ao mesmo tempo tem recusado a integração política.

Essa integração é inevitável?
Não tenho grandes fantasias sobre integração política. Ainda não sou federalista, mas reconheço que uma união monetária não funciona sem uma maior integração política. Não funciona pura e simplesmente. Podemos continuar todos iludidos, mas não funciona. Esta contradição arrisca-se a inviabilizar a própria zona euro. Estou convencido de que o "Brexit" é, em si, uma consequência inevitável desta contradição.

Há uma maior integração política pela via administrativa e não pela via política, pela centralização de decisões em órgãos administrativos. Por exemplo, a DGcom [Direcção-Geral da Concorrência da UE] tem um poder que nenhuma instituição federal nos Estados Unidos da América tem. Desse ponto de vista, a UE já é mais um estado unitário do que um estado federal. Temos feito uma centralização administrativa que é um dos piores caminhos que se podem tomar. Esta contradição, se não se conseguir resolver, mais a necessidade de uma governação económica mais integrada, arrisca-se a poder desintegrar a zona euro e a UE.

Não havendo sinais de que isso esteja a mudar, faz sentido discutir uma saída da zona euro?
Não. Para Portugal, mesmo com as contradições que hoje existem, a saída unilateral da zona euro arriscava-se a ser um caminho, não digo suicida, porque as sociedades não morrem, mas muito traumático. Teria consequências devastadoras. É claro que, depois, como em tudo, a sociedade acabaria por recuperar e daqui por umas dezenas de anos estaríamos numa nova normalidade, mas a transição seria muito violenta para toda a gente. Não acho que devamos ter nenhum acto unilateral, devemos, sim, empenhar-nos em assegurar que a zona euro melhora o seu funcionamento, melhora a sua governance. Vivo com muito desconforto com o poder que certas entidades administrativas têm sobre a vida dos Estados.

Como por exemplo?
A política externa portuguesa relativamente aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) foi extremamente condicionada pelas decisões do BCE e da DGcom, o que é, do ponto de vista político, inaceitável. Que um Estado e as suas instituições fiquem condicionados nas opções da sua política externa é algo inaceitável e que não acontece num estado federal.

Está a referir-se aos casos da banca?
Nomeadamente. A restrição que foi colocada face ao envolvimento que a banca portuguesa tinha nos PALOP, a forma como foi feita é inaceitável.

O programa de ajuda externa foi uma oportunidade perdida para fazer as tais reformas que necessitamos para sair deste aparente beco sem saída: não conseguimos crescer e não conseguimos resolver o problema da dívida?
O facto de a crise ter sido muito mal resolvida pelas autoridades europeias limitou muito a margem de manobra e acentuou muito o aspecto austeritário do ajustamento. Portugal fez o que tinha de fazer nas circunstâncias em que teve de o fazer, mas de certa forma limitou outro tipo de actuações.

Como assim?
Já tivemos ajustamentos destes no passado, nomeadamente em 1978 e 1983, mas o que tivemos foi, quando tínhamos de contrair a procura interna, porque tínhamos um desequilíbrio muito grande de excesso de procura, um boom de procura externa obtido com a desvalorização. A economia reequilibra-se mais rapidamente, tem um efeito recessivo muito menor e tem menos consequências sociais. Desta vez, porque, por um lado, não se tinha o instrumento para desvalorizar e criar um choque de procura externa e, por outro lado, porque todos os países da zona euro entraram em austeridade ao mesmo tempo, coarctaram o próprio crescimento da procura externa, que seria a compensação necessária para esse ajustamento. Portanto, o nosso ajustamento acabou por ser demasiado enviesado num sentido e, com isso, criou uma mágoa social muito grande, que tornou difícil gerar um consenso para as reformas necessárias. Agora, com esta solução governativa, apostou-se na reversão, o que acentuou a imagem negativa do ajustamento.

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