“Houve um tratamento imprudente” do sector financeiro durante a troika
Em entrevista, Vítor Bento recorda os anos do programa de ajustamento vivido em Portugal entre 2011 e 2014 e a actuação da troika no sistema financeiro. “Hoje é claro que houve um tratamento imprudente da componente financeira durante o programa de ajustamento.”
Vítor Bento era presidente do Banco Espírito Santo (BES) quando o Banco de Portugal decidiu aplicar uma medida de resolução à instituição. Manteve-se como presidente do Novo Banco, mas acabaria por sair, defendendo, como preferencial, uma solução para o banco diferente do caminho que o Banco de Portugal e o Fundo de Resolução traçaram para a instituição.
Em entrevista ao PÚBLICO, o economista recorda os anos do programa de ajustamento vivido em Portugal entre 2011 e 2014 e a actuação da troika no sistema financeiro. “Hoje é claro que houve um tratamento imprudente da componente financeira durante o programa de ajustamento”, explica Vítor Bento, adiantando que se escondeu uma “crise bancária que existia” e que se deixou que rebentasse fora de tempo.
O sistema financeiro não estará hoje melhor do que estava antes do programa de ajustamento. A que se deve esta situação?
É sempre mais fácil definir a táctica do jogo à segunda-feira do que no sábado antes do jogo. Mas feito esta ressalva, hoje é claro que houve um tratamento imprudente da componente financeira durante o programa de ajustamento.
Acabou por se esconder uma crise bancária que existia, que estava latente, que não foi resolvida e que se deixou que rebentasse fora de prazo. Digo fora de prazo por várias razões. Porque era preferível que tivesse sido enfrentada durante o período em que se estava sob a troika, em que se tinha a cooperação dos parceiros para a sua solução e, portanto, poderia ter havido um envolvimento maior, uma co-responsabilização na sua resolução. Por outro lado, porque a crise nessas circunstâncias seria resolvida sob as mesmas regras com que outras crises foram resolvidas. Os próprios países credores tiveram as suas crises bancárias, a Alemanha também teve a sua crise bancária, e resolveram-nas segundo as regras antigas. Nós, ao adiarmos a nossa, acabámos por ser apanhados por regras que foram definidas para as crises futuras, com muito menos margem de manobra e com consequências que serão mais adversas para a economia como um todo.
Houve motivos eleitorais para isso e com complacência do Banco de Portugal?
Não sei. Se calhar valia a pena que isso fosse apurado. Pode ter sido um excesso de fé, de que o problema se resolvia por si, de que se déssemos tempo ao tempo os bancos acabariam por internalizar essas perdas com a sua própria rentabilidade.
Não aconteceu.
O que se verificou, e essa parte não foi devidamente antecipada, é que o modelo de funcionamento da banca mudou radicalmente. A banca não está a conseguir, e vai levar tempo até que o consiga, gerar rentabilidade para remunerar o custo de capital e, portanto, não consegue gerar rentabilidade para absorver as perdas do passado e as perdas que vieram ao de cima. Com mais ou menos complacência, acabaram por vir ao de cima. Agora, de facto, o timing foi mau. Acabámos por ter uma crise fora de prazo. Quando já tínhamos resolvido a parte mais premente, a orçamental, acabámos por não conseguir ter a fachada limpa.
O Novo Banco continua por vender, já perdeu muito valor. O tempo deu-lhe razão?
Entendia que a solução que devia ter sido adoptada para o banco deveria ter sido mais consentânea com o que foi feito em todos os países, e que continua a ser feito. Ainda não vi em mais nenhum lado ser aplicada a nossa solução. Mas também devo dizer, até porque na altura deixei isso escrito, que depois de feita a resolução, basicamente havia duas soluções viáveis ou de preservação de valor. Uma delas era o banco deixar de ser de transição, o Estado empenhar-se em assumi-lo, procurar-se um investidor privado que servisse como âncora accionista do banco e depois, gradualmente, ir recuperando o banco, e, com o tempo, alargar a base privada do banco, inclusivamente com um possível IPO [dispersão em bolsa]. A outra solução viável era a venda imediata do banco. Era solução viável, mas não era a que preferia. Qualquer outra solução implicaria destruição de valor, porque não é possível ter um banco indefinidamente sem estratégia, e um banco de transição, por definição, não pode ter estratégia. Não é incapacidade da gestão, mas a ideia de banco de transição é incompatível com estratégia.
Optou-se pela venda, mas o banco continua por vender.
Tendo-se optado na altura pela venda imediata, não percebo porque é que não ocorreu, e porque é que ainda não ocorreu ao fim de quase três anos.
Não sei. A única informação que tenho sobre o assunto é aquilo que vai aparecendo nos jornais e aquilo que dão a Marques Mendes para ele dizer. Fico surpreendido, mas não tenho informação.
A sua solução preferencial na altura ainda é hoje a melhor?
O jogo mudou muito. A situação hoje já não pode ser comparável ao que era em 2014 por várias razões. Ocorreu muita coisa que alterou as próprias condições do jogo. Entre outras, decorreu tempo. As opções hoje são mais restritas, mas como não tenho a informação toda, não quero contribuir para dificultar aquilo que é uma responsabilidade das autoridades estando a pôr cenários.