A triste descrença em nós

Não caminhamos no trilho da evolução quando não reconhecemos que a discriminação de género é, de forma muito clara, uma violação dos direitos humanos

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Canice Leung/Reuters

A 21 de Janeiro de 2017 mais de vinte países foram marcados por marchas em prol da igualdade de direitos das mulheres. Em 2017 - ainda - é necessário encetar cruzadas pela crença na justiça, na soberania da dignidade e na liberdade. Esta é uma terra à espera de ser convertida, de ser inseminada com a semente da razão, preenchida com ideais baseados no princípio da semelhança. Hoje, impera o sentimento de incerteza, de inexatidão e de mudança numa equação cheia de variáveis incógnitas. É, por isso, preciso que em 2017 se façam marchas pelo direito de igualdade de género. Triste.

Nos últimos séculos a evolução tecnológica, científica e digital é de notar. O pensamento, a cosmologia e a filosofia foram testemunhas do desenvolvimento das formas viventes e reflexo das grandes mudanças que se foram dando. Mas o potencial progresso do essencialismo humano não foi mais do que exatamente isso: potencial. Avistaram-se vislumbres de legislações que atenuam as desigualdades; instituições dedicadas a formar, educar e criar oportunidades iguais; limites e diplomacias em situações profissionais que requerem o reconhecimento do semelhante e organismos que protegem e expõem situações flagrantes. Este desenvolvimento tecnológico, digital e científico constrói caminhos que aproximam tudo e olhos que vêem com um alcance imensurável. Está, assim, ao alcance de todos os olhos e de todas as mentes a fragmentação social e cultural que deriva desta questão. É difícil abrir mentes. A evolução tecnológica vai muito à frente da evolução social, cultural, humana. No primeiro dia de administração de Donald Trump, pela sua postura sexista, ofensiva e misógina, sente-se o medo do retrocesso e a incerteza de um tratamento justo, igualitário, de igual para igual. Fizeram-se marchas porque são necessárias.

Não caminhamos no trilho da evolução quando não reconhecemos que a discriminação de género é, de forma muito clara, uma violação dos direitos humanos. Quando recém-nascidos são mortos por serem mulheres é uma violação dos direitos humanos; quando homens são enviados para a guerra pela capacidade de guerrilha ser, alegadamente, inerente ao género é uma violação dos direitos humanos; quando mulheres são vítimas de tráfico de prostituição é uma violação dos direitos humanos; quando existem milhares de mulheres e de homens sujeitos a violência doméstica constante é uma violação dos direitos humanos. Listas infindas de atrocidades cometidas no passado, no presente e, se a inércia ganhar, no futuro.

Deverá haver um feminista em cada um de nós. Esta é uma guerra onde a liberdade de expressão deve ser a arma essencial. O discurso, o apelo à razão, o intelecto, as lições da História. Não há distinção de sexo na morte, não há barreira que seja inerente aos homens ou às mulheres no que concerne à dor, à felicidade, à miséria ou à bondade. É necessária uma visão atualizada, uma quebra do silêncio e da indolência. A indignação berra nas nossas caras pela tristeza de uma realidade onde a desigualdade é, ainda, um problema com contornos profundos. Grita a indignação de perceber que esta é uma luta que continua a ter que ser travada. O primitivismo do motivo desta luta é um reflexo do estado bruto em que as sociedades se encontram. O motivo deveria ser obsoleto, memória de tempos antigos. Deverá haver um feminista em cada um de nós. Lutemos as lutas do passado, porque é preciso. Porque são as lutas do presente, infelizmente. Mas envergonhemo-nos de uma evolução que aposta em tudo menos na crença na essencialidade das ferramentas básicas do desenvolvimento: nós.

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