O cavalo de batalha de Napoleão volta à carga
Chamava-se Marengo e o seu esqueleto está a ser remontado para regressar às galerias do National Army Museum, em Londres, cuja reabertura, inteiramente renovado, está prevista para a Primavera. Os arquivos dizem que ele nunca existiu, mas isso parece absolutamente irrelevante.
Convenhamos que não é comum um cavalo ter direito a biografia publicada e a textos e textos em que expressões aparentemente exageradas do género “o poderoso corcel” aparecem antes do seu nome ou logo a seguir. Marengo não era um cavalo comum, como não era comum o seu cavaleiro, e talvez por isso cause menos espanto tamanha atenção. De todos os cavalos de batalha de Napoleão Bonaparte era o que o imperador dos franceses preferia, aquele que, como o seu dono, se bateu até ao limite das suas forças em Waterloo e perdeu.
O imaginário popular guardou-lhe o nome, mesmo que os arquivos o tenham perdido (já lá iremos), e a sua presença em Londres nos últimos 200 anos tem ajudado a contar uma história que termina, como convém, com uma vitória britânica.
O esqueleto de Marengo, que tem estado em exposição na galeria que o National Army Museum dedica à célebre Batalha de Waterloo (Junho de 1815), que culminou com a derrota de Napoleão (1769-1821) e o seu exílio no Atlântico sul, na Ilha de Santa Helena, onde viria a morrer, está agora a ser reconstruído por dois especialistas em conservação e restauro, Derek Bell e Arianna Bernucci.
Durante quase dois séculos, os ossos do pequeno garanhão árabe que Napoleão terá trazido da Batalha de Aboukir, no Egipto, em 1799, estiveram numa estrutura de ferro muito tosca, hoje em mau estado. Segundo o diário britânico The Guardian, o objectivo da intervenção conduzida pela dupla Bell-Bernucci é devolver a Marengo a dignidade que a montagem original do seu esqueleto lhe retirou.
Sublinhando que se trata de um dos cavalos mais famosos da história e, sem dúvida, uma das peças mais populares da colecção do National Army Museum, Sophie Stathie, uma das suas conservadoras, defende que, até aqui, “a cabeça caída e a posição rígida das pernas” faziam com que Marengo parecesse “mais uma mula”, dando-lhe uma imagem muito distante da que se conhece da iconografia associada a Napoleão.
Embora se saiba que as representações de Napoleão a cavalo têm muito de fantasioso – imagens como o retrato de Jacques-Louis David (há várias versões) destinam-se a sublinhar simbolicamente o seu poder e não têm qualquer preocupação documental – era preciso intervir, diz Stathie: “Sempre que vinha à galeria pensava que havia nele alguma coisa triste.”
Nada naquele esqueleto parecia evocar o cavalo que atravessou as guerras napoleónicas e deve o seu nome a uma das mais importantes vitórias das tropas francesas, em 1800, quando expulsaram os austríacos do Norte de Itália. Nada parecia evocar o cavalo que andou pelo Mediterrâneo, que combateu na Península Ibérica, na Áustria e na Alemanha, e que, como se não bastassem as provas dadas até então, percorreu quase cinco mil quilómetros para ir até Moscovo e voltar a casa quando tinha já 19 anos.
Se a montagem original não lhe faz justiça, lembra o Guardian, talvez isso se explique pelo facto de ter sido feita no grande Hospital de Londres, que funcionava quase desde a sua fundação como escola, por alguém habituado a preparar esqueletos humanos para o ensino e que, provavelmente, não era lá grande conhecedor da anatomia dos equídeos.
Os conservadores-restauradores que agora trabalham para devolver a Marengo a dignidade perdida começaram por estudar cuidadosamente as condições de estabilidade do esqueleto, explica Bernucci num vídeo disponível no site do museu, apercebendo-se de que eram melhores do que à partida esperavam (o último restauro foi há 50 anos). Depois deram início à desmontagem, um processo “lento e monótono”. Neste momento já o retiraram do suporte e estão a intervir em três das pernas do cavalo, cada uma com uma barra de ferro no seu interior.
Mito e realidade
O que se sabe sobre Marengo mistura mito e realidade. E se alguns não têm dúvida de que era o favorito do imperador, outros defendem que Napoleão tinha tantos cavalos e tão parecidos entre si que é impossível determinar qual deles preferia. Há até quem ponha em dúvida que Marengo tenha de facto existido.
Christopher Summerville, autor de Who Was Who in Waterloo: A Biography of the Battle, está entre os que relativizam o papel de Marengo, lembrando que, durante os três dias que durou esta batalha, o imperador comandou sobretudo de postos no terreno ou da sua carruagem e, quando andou a cavalo, fê-lo em vários. Summerville faz mesmo uma espécie de inventário: Cerbère foi morto por uma bala de canhão; Désirée, égua cujo nome se deve à primeira noiva de Napoleão, Désirée Clary, desapareceu sem deixar rasto; Jaffa, que sobreviveu, foi vendido num leilão; Marie, nomeada em homenagem à amante polaca do imperador, Marie Walewska, foi levada como troféu de guerra pelo comandante das tropas prussianas aliadas dos britânicos, Gebhard von Blücher; e um outro garanhão árabe, que terá sido levado para Inglaterra por um tenente e apresentado como Marengo, mas que, segundo Jill Hamilton, autora da tal biografia, Marengo: The Mith of Napoleon’s Horse, era provavelmente Ali (ou Aly).
O que se sabe, sublinha o Guardian, é que Marengo (ou outro cavalo que até nós chegou com esse nome) foi deixado no campo de batalha, a menos de dois quilómetros da pequena cidade de Waterloo, quando Napoleão regressou a Paris para abdicar formalmente do trono e se render aos britânicos. São muitas as fontes que precisam que o pequeno garanhão cinzento-claro, reconhecido pela sua robustez e velocidade, tinha uma bala alojada na anca e um “N” encimado por uma coroa ferrado a fogo no flanco esquerdo.
Capturado pelos granadeiros, foi então levado de barco para Inglaterra com outros animais feridos, sendo apresentado como o cavalo de guerra do imperador francês que as forças comandadas pelo Duque de Wellington tinham derrotado. No imaginário popular, Marengo era o inimigo de Copenhagen, o cavalo que o marechal e político britânico montou em Waterloo e o seu predilecto.
O encanto de Marengo, que apresentava pelo menos cinco marcas de ferimentos no corpo, não terá passado despercebido a John Julius William Angerstein, um militar de carreira que, sendo a figura rebelde de uma família tradicional que o mandara educar em Eton, tinha decidido dedicar-se à criação de cavalos. Foi nos estábulos de Angerstein, que o comprou ao tenente que o trouxera de Waterloo, e depois de várias tentativas mal-sucedidas para que deixasse descendência, que Marengo terá morrido, em 1831, quando já tinha quase 40 anos.
Angerstein doou, então, o seu esqueleto ao Royal United Services Institute, que o terá exposto. Na montagem original, o cavalo estava assente apenas em duas patas, já que os dois outros cascos não constam do esqueleto. Um deles, aliás, foi transformado numa caixa de rapé e, durante mais de 150 anos, esteve na messe dos oficias do Palácio de Saint James.
O esqueleto foi visto por multidões e até pela rainha Vitória. É de prever que alguém tenha informado a monarca de que aquele era o cavalo favorito do imperador dos franceses quando se tratava de combater e que Napoleão o montara em Austerlitz (1805), Jena (1806) e Wagram (1809), sem esquecer a longa campanha russa de 1912 e o desaire final de Waterloo.
Nos anos 1960, Marengo e outros materiais relacionados com Waterloo foram entregues ao National Army Museum que acabava de abrir. Na nova montagem do cavalo, que está a ser preparada cuidadosamente, os dois cascos em falta serão reconstituídos e o esqueleto exposto junto a outras relíquias da última batalha de Napoleão.
Cavalos dóceis e bem educados
Muitos poderão argumentar que o esqueleto do museu de Londres não é o de Marengo, mas isso parece agora impossível de verificar. De acordo com Jill Hamilton, que em Marengo: The Mith of Napoleon’s Horse tentou separar mito e realidade, distinguir os cavalos de Napoleão não é tarefa fácil porque o imperador privilegiava sempre os garanhões árabes de baixa estatura e pelo cinzento claro, esbranquiçado, o que os torna muito parecidos entre si.
Cuidadosamente treinados em condições que reproduziam as dos campos de batalha – armas a serem disparadas, cães a ladrar junto às suas pernas, espadas desembainhadas, bandeiras ao vento – os cavalos de Napoleão eram, por regra, “dóceis, gentis e de confiança”, escreve o conde de Las Cases (1766-1842), que o acompanhou no exílio e que é o autor de um dos livros de referência sobre o imperador (Le Mémorial de Sainte-Hélène). Napoleão não fora ensinado a montar em pequeno e, quando a cavalo, era tudo menos gracioso. Dizem as crónicas da época que era um cavaleiro corajoso e eficaz, mas que não podia montar um animal que não estivesse já educado. Os cavalos que escolhia para si, diz Las Cases, eram regra geral baixos e magros e seriam considerados patéticos por qualquer um dos oficiais superiores sob o seu comando.
Hamilton não encontrou qualquer registo de um cavalo chamado Marengo nos estábulos de Napoleão ou em qualquer outra fonte primária saída dos arquivos franceses e britânicos, e defende, por isso, que o animal em causa pode ser um dos que o acompanhou ao longo de toda a sua carreira militar, Ali (ou Aly). No entanto, a falta de referências a Marengo pode explicar-se simplesmente, argumentam alguns historiadores e biógrafos, pelo facto de o imperador ter o hábito de dar alcunhas (a sua égua Marie, por exemplo, era muitas vezes tratada por Zina e até a sua mulher, Josephine, se chamava na realidade Marie Josèphe Rose).
Eternamente misterioso, real ou não, Marengo vive hoje no imaginário popular que rodeia uma das figuras mais fascinantes de sempre. A partir da Primavera estará em exposição para mostrar que os cavalos fazem parte da história e também perdem batalhas.