Donald Trump: não o tratem como um idiota
A América já resistiu a muita coisa. Irá certamente resistir a Donald Trump.
Donald Trump não é um imbecil, e continuar a tratá-lo como se fosse um tontinho que acabou sentado na Casa Branca por mero acaso, ao mesmo tempo que desprezamos o voto, as expectativas e o descontentamento de quem o elegeu, é uma atitude palerma, que tem sido incessantemente repetida por colunistas, humoristas, jornalistas, artistas, intelectuais e milhões de habitantes do planeta Terra. Foi assim durante a campanha. Continuou a ser assim depois da eleição. Nada indica que deixe de ser assim após a tomada de posse. Só que Trump não tomou o poder pela força, e o respeito que nos merece a democracia e o voto popular só é verdadeiramente testado quando nós não gostamos, desprezamos ou até odiamos quem foi eleito.
O boicote dos artistas à cerimónia de inauguração, os anúncios estrepitosos de quem fez questão de dizer que não estaria presente, os apupos que se ouviram durante o juramento presidencial ou os confrontos selvagens com a polícia não mostraram apenas desrespeito por Donald Trump, o que seria inteiramente legítimo. Mostraram também desrespeito pelas instituições democráticas e pela transição pacífica de poder, o que já custa a aceitar. Isto não significa que o novo Presidente dos Estados Unidos não seja um homem perigoso, narcisista, imprevisível, incontrolável, e que pode vir a deixar, com boa probabilidade, um mundo bem pior em 2021 do que aquele que encontrou em 2017. Pelo contrário. É porque ele é tudo isto, e porque os perigos são bem reais, que Donald Trump deve ser levado a sério, como o político profissional que passou a ser, e não como um alienígena alaranjado que assaltou ilegitimamente Washington quando todos estavam distraídos. Ninguém estava distraído. Ele foi gozado, vilipendiado, maltratado e detestado como nenhum outro candidato antes dele. Ainda assim, ganhou.
Até hoje, praticamente só houve espaço para dois discursos sobre Trump: o discurso paródico e o discurso apocalíptico (Nicolau Santos escreveu no Expresso, possivelmente a partir de um abrigo nuclear: “se cumprir tudo o que já prometeu, iniciamos a contagem descrescente para a III Guerra Mundial”). Nenhum destes discursos serve, porque ambos alimentam a visão primária do “nós” (Trump e o povo) contra o “eles” (a elite política e mediática). Foi isso que recentemente se passou com o relatório das alegadas actividades sexuais de Trump em Moscovo, publicado sem qualquer confirmação do seu conteúdo. Nada beneficia mais um mentiroso do que ser acusado de uma falsa mentira. A comunicação social e os seus opositores têm estado diariamente a oferecer-lhe material para construir o casulo que o irá abrigar quando estiver realmente a mentir e a transgredir de forma despudorada.
Se não o tratarmos como um idiota, nem como a encarnação do demo, poderemos ver Trump como ele é: um outsider que se propõe dinamitar o establishment de uma forma que pode ser desastrosa. Só que a América precisa de ver isso com os seus próprios olhos – e ele ganhou legitimidade para o mostrar. Sim, o seu discurso inaugural foi megalómano, populista e isolacionista. Erradicar o terrorismo islâmico da face da Terra? Descrever a economia global como um sugadouro da riqueza americana? Anunciar que a América “vai brilhar” e que “toda a gente a vai seguir”? Um susto do princípio ao fim. Só que é um susto inevitável, que temos todos de levar em nome da democracia. Não há alternativa. A América já resistiu a muita coisa. Irá certamente resistir a Donald Trump.