O cinema português com os olhos no Japão

Faz agora 20 anos – um filme estreado em 1997 – João Mário Grilo mergulhava no mesmo Japão do filme de Scorsese, contando a história dos missionários jesuítas portugueses e outros mártires cristãos, num filme que se chamou Os Olhos da Ásia.

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Uma das personagens de Os Olhos da Ásia, de João Mário Grilo, erto, tão perto que uma das suas personagens, o Padre Cristóvão Ferreira, também se encontra em Silêncio,

É pouco habitual ver um filme americano, de um cineasta tão relevante como Martin Scorsese, lidar com personagens portuguesas e narrativas relacionadas com a História de Portugal. No caso, a presença portuguesa no fechadíssimo Japão dos séculos XVI ou XVII, e em particular a faceta missionária e evangelizadora dessa presença. Estaremos, com Silêncio, perante um daqueles muitos exemplos em que a vocação “universalista” do cinema americano se apropria de histórias nacionais que as respectivas cinematografias, por uma razão ou por outra, se abstiveram de contar?

Não é o caso. A relação de Portugal com o Japão, em sentido lato, está bem presente no cinema de Paulo Rocha (ele próprio foi, durante quase dez anos, adido cultural da Embaixada portuguesa em Tóquio), em especial nesse par de filmes de títulos “anagramáticos” composto por A Ilha dos Amores e A Ilha de Moraes, no princípio dos anos 80, ambos seguindo o rasto de Venceslau de Moraes. E faz agora 20 anos – foi um filme estreado em 1997 – João Mário Grilo mergulhava no mesmo Japão do filme de Scorsese, contando a história dos missionários jesuítas portugueses e outros mártires cristãos, num filme que se chamou “Os Olhos da Ásia” e que, tendo desaparecido um pouco da vista (injustamente: é um dos melhores do seu autor), esta era uma boa ocasião para recuperar.

Os Olhos da Ásia não adaptava explicitamente o romance de Shusaku Endo que esteve na base do filme de Scorsese (e que já fora filmado em 1971 por um japonês, Masahiro Shinoda) mas andava lá perto, tão perto que uma das suas personagens, o Padre Cristóvão Ferreira, interpretado por João Perry, também se encontra em Silêncio, agora com o rosto de Liam Neeson. O interesse de Os Olhos da Ásia não estava apenas no século XVII e nesses mártires cristãos, essa história era posta em articulação com um segmento contemporâneo (onde pontificava Geraldine Chaplin), que por sua vez abria tanto para a memória da bomba atómica sobre Nagasaki (cidade crucial na presença portuguesa e na implantação do cristianismo no Japão) como para a história de quatro miúdos japoneses que séculos antes foram enviados a Roma como “prova” da conversão do Japão ao Cristianismo. Era na conjunção destes vários “martírios”, e nos seus ecos mútuos, que Grilo encontrava o seu filme, sob a égide assumida (a mesma epígrafe extraída a Walt Whitman sobre “o berço incessantemente embalado”) de David Wark Griffith e do seu monumental Intolerância, filme de 1916. Em todo o caso, e sem se tratar aqui de jogar um contra o outro (embora Os Olhos da Ásia nos pareça muito melhor filme do que o de Scorsese, feito num dos seus piores dias), a história do “silêncio” propriamente dito aparecia com bem mais força no filme de Grilo – especialmente a resistência à abjuração de Julião Nakamura (outra figura histórica, que fora uma das crianças mandadas a Roma), vivida em sofrimento escuro e silencioso, no rosto estampado o conflito entre o sofrimento físico e a força anímica conferida pela devoção. Se por mais nada, também se pode ver Silêncio como um convite à redescoberta de um dos mais subestimados filmes portugueses das últimas décadas.

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