A História em directo
Nos grandes momentos da vida nacional, ergue-se o espectáculo da banalidade e do kitsch até atingir níveis inauditos.
Foram três ou quatro dias penosos e castigadores. A ocasião era de luto pela morte de um ex-Presidente da República, figura maior da nossa história política contemporânea, apto a atrair todas a venerações e todos os ódios. Mal começávamos a ler um jornal, a passar os olhos pela televisão ou a escutar as principais estações de rádio, éramos assaltados por uma torrente de discursos, imagens e vozes que, certamente cheias de boas intenções e genuínos sentimentos, pareciam olhar-se, com uma emocionada satisfação, no espelho da sua banalidade enfática. Todo o dispositivo mimético do kitsch surgia ali, na empatia, na estupidez e na emoção auto-gratificantes que montaram uma operação de paródia da catarse.
Importa dizer que o kitsch não se circunscreve ao universo da arte, não é apenas o mau gosto e a banalidade artísticas. Há uma concepção ética do kitsch (formulada por vários artistas e escritores importantes da cultura vienense das primeiras décadas do século XX) que o vê sobretudo como modo de comportamento. A pessoa-kitsch só tem palavras vãs, produz retórica de pacotilha quando julga que está a ser poética, e quanto mais quer engrandecer o objecto dos seus elogios emocionados mais deixa perceber a falsificação. Não é que ele queira mentir, mas a mentira é consubstancial às suas palavras, está colada a elas como uma substância pegajosa. Ele não fala para mentir, mas mente porque fala. A pessoa-kitsch pensa que basta dizer “alfazema” para que o seu auditório experimente imediatamente o ambiente perfumado, à boa maneira do escritor expressionista, pobre de meios, que diz “merda” e pensa que os leitores vão sentir o cheiro. O espectáculo do kitsch, sendo despudorado, produz atracção e repulsa, solicita a adesão empática ou provoca uma vergonha que faz corar a quem ele assiste. Nesses dias de luto, o kitsch foi o género jornalístico e editorial por excelência.
Inserido na mesma operação do kitsch, houve a obsessiva evocação da História, entendida como um tribunal que laicizou a instância teológica do Juízo Final. Impressiona como não há interrupção nem intervalo nesta ideia de uma história que está para além das construções historiográficas e interpretativas. “Fazer história” foi a expressão que mais ouvimos na ocasião; ou então, numa variante da mesma ideologia, “entrar na História” (aqui – acho - tenho que utilizar a maiúscula). Nada empolga mais o jornalismo do que estes momentos em que ele julga que está a responder aos desígnios da história e a fazer-lhe justiça. É a euforia de quem pensa que está a fazer a história do presente e em directo dos Jerónimos. Mas é sobretudo a ideia de uma história feita de heróis que constitui o núcleo da conversa, alimentada naqueles dias por um longo cortejo de vozes públicas. E aqui costuma ser obrigatório que a conversa adquira um tom elegíaco e surja a pergunta fatal “Onde estão os grandes homens de antigamente?”. Somos todos órfãos, nesta época da História Universal que já não coincide com História dos Grandes Homens. Até parece que entrou em circulação generalizada um livro, de reputação infame, de um escritor inglês do século XIX, Thomas Carlyle, sobre os heróis da História, os homens dotados de poderes extraordinários.
A seguir a esses dias de kitsch lutuoso, mas nada sóbrio, em que se celebrou na figura de um ex-Presidente o elemento épico da História, aflorou um debate sobre o jornalismo, tendo um congresso de jornalistas como pano de fundo. A verdade do jornalismo e dos media é a de uma profunda indigência cultural. Mas isso é o recalcado de toda a discussão.