Serviços de saúde estão a dificultar acesso a grávidas imigrantes
Todas as grávidas estão isentas das taxas moderadoras na saúde. Mas há imigrantes sem visto de residência que se queixam de barreiras de acesso a consultas e exames. Casos que chegam a associações têm aumentado no último ano. Hoje é Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, declarado pelo Vaticano
Chegou a Portugal em Fevereiro, grávida de quatro meses, com a expectativa de o marido conseguir trabalho e ela também. Indiana, Zarat (nome fictício) é uma mulher pequena e fala pausadamente. A determinada altura da conversa com o PÚBLICO começa a chorar, entre o relato do que foi o périplo para conseguir tratamento médico e a falta de informação sobre o que aconteceu ao bebé que acabaria por perder, depois de dar à luz.
Tudo começou com as primeiras idas ao centro de saúde num dos bairros periféricos de Lisboa. Tentou pelo menos três vezes registar-se e ter consulta, mostrando exames a comprovar que estava grávida. Mas sem visto ou autorização de residência, não foi atendida. Mostraram-lhe um papel onde estava escrito que precisava de visto de residência, cartão de segurança social, entre outros requisitos impossíveis de obter naquela situação. E pediu ajuda a uma organização que apoia pessoas como ela. Conseguiu, finalmente, ser atendida no centro de saúde. Onde ninguém a informou, contudo, que precisava de uma declaração do médico a isentá-la das taxas cobradas em consultas e exames. “Era muita coisa ao mesmo tempo”, lembra. “Não tínhamos trabalho, não podíamos pagar”, acrescenta.
Em Portugal, o tratamento médico não pode ser recusado a ninguém, estando ou não em situação irregular. Além disso, diz o despacho n.º 25 360/2001, do Ministro da Saúde, que os imigrantes de países terceiros sem autorização de residência ficam isentos de taxas em situações que ponham em perigo a saúde pública. Uma circular da Direcção-Geral de Saúde (DGS), de 7 de Maio de 2009, clarifica ainda que essa isenção é dada aos imigrantes que apresentem ou não um atestado de residência da Junta de Freguesia a demonstrar que vivem em Portugal há mais de 90 dias, caso se enquadram nas excepções. Aí está incluído a saúde materno-infantil e a saúde reprodutiva, consultas de planeamento familiar, interrupção voluntária da gravidez, acompanhamento e vigilância da mulher grávida, parto e puerpério ou cuidados de saúde prestados aos recém-nascidos, entre outras. Prevê-se ainda isenção para quem está em situação de exclusão social ou carência económica.
Porém, a dificuldade de acesso à saúde por imigrantes, sobretudo de países terceiros, e sem a situação regularizada, não é de todo incomum. Várias mulheres entrevistadas pelo PÚBLICO queixaram-se: foi recusado o atendimento no centro de saúde, pura e simples, mesmo estando grávidas; ou foi-lhes cobrado pagamento, indevidamente; ou não foram vistas por um médico por não falarem português; ou foi-lhes recusado o acesso a um número de Serviço Nacional de Saúde quando, na verdade, até descontam para a Segurança Social e pagam impostos. A DGS diz que desconhece casos como estes e indica que “qualquer situação que lhe seja comunicada será analisada”. Acrescentou mesmo que, se “necessário, serão tomadas iniciativas que corrijam as suas causas”. Também o Ministério da Saúde informou que não tem registo de queixas.
Lei protege e cria dificuldades
Embora sem especificar as razões, os dados da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial entre 2005 e 2015 mostram 31 reclamações relativas à Saúde. No último Migrant Integration Policy Index (Mipex), de 2014, onde se mede as políticas de integração em 38 países, incluindo a União Europeia, a Saúde era o indicador em que Portugal estava pior (com 43 pontos, o que significa menos do que favorável, quando, por exemplo, na mobilidade do mercado do trabalho atinge 91).
Beatriz Padilla, socióloga argentina que tem vários projectos sobre saúde e imigrantes em Portugal, também autora da secção de saúde do Mipex para Portugal, explica que no contexto europeu, o país “não é dos piores” nesta matéria. Mas “já foi melhor”. No Mipex avalia a parte legal e as barreiras no acesso à saúde pela parte de requerentes de asilo, imigrantes regularizados e imigrantes sem autorização de residência. A sua percepção geral sobre o país é que, se por um lado, a “lei protege a grávida”, por outro, “depois criam-se dificuldades no acesso”.
Jéssica Lopes, coordenadora do grupo de mulheres na Solidariedade Imigrante (Solim), não consegue dar números de queixas de acesso à saúde que atendeu nesta associação com mais de 26 mil sócios. Mas trabalha na Solim há dois anos e só há poucos meses é que viu aparecerem estas situações. Desde Abril, atendeu 550 mulheres: “Diria que dessas, mais ou menos 30% vieram com problemas de saúde desse género. É o único número que consigo dar.” As queixas são barreiras que se colocam sobretudo a quem não fala português, nota. “As mulheres asiáticas vêm à Solim quase sempre por causa disto.”
O grande problema, sublinha, é as mulheres não serem informadas pelos centros de saúde dos seus direitos. Ninguém lhes diz que passos dar para não lhes serem cobradas as taxas. E os médicos nem sempre passam a declaração de isenção na primeira consulta, acrescenta. “Normalmente [as mulheres recebem-na] quando vão à consulta com a declaração que a Solim passa a lembrar a instituição dos seus direitos. Isso é um direito que deveriam logo ter. Nem todas as grávidas passam pela associação”, critica. Os casos mais frequentes são de mulheres que não conseguem pagar as consultas ou exames.
“Chorei o dia todo”
Chegou a Portugal como turista, mas acabou por ir ficando. Natural do Bangladesh, tinha acabado o mestrado em contabilidade em Londres. Sharmin Akter, 30 anos, estava grávida de dois meses quando se deslocou pela primeira vez ao centro de saúde da Buraca, com número de contribuinte e passaporte. Fê-lo em vão. Não disse, no centro de saúde, que estava grávida. “Voltei para casa e fiquei deprimida, a pensar no que ia fazer”, conta ao PÚBLICO em sua casa, sentada a uma mesa onde estão chamussas e doce de aletria com canela para os convidados. “Fui lá no dia seguinte e, desesperada, disse que estava grávida, implorei para me atenderem. Estava lá uma mulher simpática, e tive sorte. Conheço muitas grávidas que enfrentam problemas e pagam muito pelas consultas e exames.”
Porém, a saga começou numa das consultas no hospital para ver se estava tudo bem com o seu bebé. A médica recusou-se a atendê-la porque não falava português. “Mandou-me voltar noutra altura e trazer alguém que falasse português. Fiquei muito chocada. A gravidez não é uma altura normal, fisicamente e mentalmente tudo está a mudar. Por isso estava nervosa. Tinha ido ver o que se passava com o meu bebé e ela não falava comigo!”
“Chorei o dia todo", recorda. Seria a pior experiência que teve em Portugal. À beira de dar à luz quando a entrevistámos, Sharmin estava com medo do que lhe pudesse acontecer durante o parto. Mandaram-na ir ao hospital todas as semanas para verificar se está tudo bem. Deram-lhe imensos papéis para ela ler – mas todos em português.
As queixas mais frequentes que Rana Uddin, presidente do Centro islâmico do Bangladesh e da Associação Amizade Bangladesh-Portugal, recebe é de que muitas pessoas que não têm documento, nem segurança social, “não são atendidas”. “Podem ser atendidas [desde que paguem], mas quem é que os vai atender com as filas de espera que existem? Mandam para urgência do hospital, que por sua vez manda de novo para o centro de saúde. Isto acontece sobretudo com homens”, afirma.
A comunidade que começou a crescer na década de 1990 – e que Rana Uddin estima em 15 mil, mais outros 15 mil que já têm nacionalidade portuguesa – enfrenta também outra questão, o que não é o caso de Sharmin: “Vindas de um país conservador, sendo muçulmanas, muitas mulheres não se sentem à vontade de serem atendidas por homens nos centros de saúde e hospitais. Há queixas, todas verbais, a pedir que sejam mulheres a atender. Não era bem recebido, diziam que têm falta de médicos” – mas neste momento começa a sentir abertura dos serviços para essa possibilidade.
Uma das medidas que Rana Uddin sugere é ter disponíveis nos serviços nacionais de saúde folhetos em bangla, pois muitos imigrantes não percebem nem inglês nem português.
E quem não conhece ninguém?
A paquistanesa Sabba Jalal, 30 anos, não estava grávida mas a razão para recorrer aos serviços de saúde enquadrava-se nos casos previstos na lei: saúde reprodutiva. Depois de estar a trabalhar durante seis anos no Dubai, chegou a Portugal em Setembro de 2015. Viajou por vários países até escolher Lisboa, e hoje trabalha numa retrosaria. Está inscrita na Segurança Social, paga impostos, “tudo legal”, mas desde Março aguarda a entrevista com o SEF para receber a autorização de residência. (Dados do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social mostram que o saldo financeiro da segurança social com os estrangeiros tem sido sempre positivo, mesmo nos anos de crise; em 2014 era de mais de 309 milhões de euros).
Há três meses Sabba encontrou alguns caroços no peito, e percebeu que tinha que ir ao médico. Quando foi ao centro de saúde mandaram-lhe fazer uma mamografia e outros exames, indicaram-lhe uma clínica privada que tem acordo com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) – mas sem número de utente recusaram dar-lhe os resultados antes de pagar uma conta que era mais de metade do seu ordenado. Sabba deu várias voltas para tentar obter o número de utente, mas passaram-se semanas e não conseguiu. Finalmente, com ajuda, conseguiu que lhe dessem uma guia a lembrar da isenção e fez exame noutra clínica.
O resultado não apontou para nada de grave, mas disseram-lhe que deveria voltar ao médico regularmente. Só que até agora não tem cartão de utente. “Viver assim é um sacrifício. Não consigo planear nada, nem sei como serei tratada. Senti-me humilhada. Só pensava: sou letrada, agora imagino aquela quantidade de pessoas que não fala inglês…! As pessoas estão a trabalhar, a pagar Segurança Social, a fazer trabalho duro por menos dinheiro, apenas para sobreviver, e são tratadas como lixo porque não falam português. Não vim para Portugal, como muita gente, por uma questão de sobrevivência, não vivo em pressão, mas aquela situação colocou-me em pressão”, lembra.
Voltando a Zarat, as coisas melhoraram com o papel “verde” de isenção passado pelo médico. Entretanto, ela e o marido estão a trabalhar. Mas a história está longe de ter terminado bem. Quando mudou para a outra zona da cidade, o centro de saúde preparou-se novamente para recusar o atendimento, mesmo com a declaração de isenção. Teve, outra vez, que andar para a frente e para trás, umas quatro vezes, diz, até encontrar uma recepcionista simpática. “Aqui em Portugal cada pessoa tem as suas regras."
O médico encaminhou-a para um hospital da zona. Antes da data estimada para o parto, sentiu-se mal. Chamou a ambulância. Foi examinada no hospital, mas mandaram-na para casa, com a justificação de que estava tudo normal. Uns dias depois, acordou cheia de sangue na cama e no chão. Voltou a chamar uma ambulância. Zarat chora agora, interrompe o relato. Continua: deu à luz, mas o médico avisou-a de que havia um problema. O bebé morreria, conta em lágrimas. Ninguém lhe explicou nada do que aconteceu, nenhum médico deu qualquer justificação. Acusa o hospital de ter sido negligente quando a mandou para casa na primeira vez em que chamou a ambulância, diz que não foi bem acompanhada. “A ambulância chegou tarde de mais, eu fui atendida tarde demais.” Acredita que se tudo tivesse sido normal desde o princípio, o seu bebé não teria morrido. “Agora tenho medo de estar neste país. Eu e o meu marido decidimos que não vamos ter o nosso próximo filho aqui”.
O casal acabou por fazer queixa à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, e o processo está em investigação. Entretanto, Zarat voltou ao centro de saúde para consulta de pós-parto: quiseram de novo cobrar-lhe.