Mota Pinto, o aliado de Soares que militava no PPD

Ministro de Soares, primeiro-ministro por indicação de Eanes e vice-primeiro-ministro no Bloco Central, Mota Pinto morreu cedo, aos 48 anos, e deixou Soares “desamparado”. Um livro recente retira da penumbra uma personalidade crucial no percurso do país da Revolução para a Europa.

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Seis dias depois da morte de Carlos Mota Pinto, a sua mulher Fernanda recebeu na sua casa de Coimbra uma visita inesperada: Mário Soares e Maria Barroso foram vê-la e perguntar se precisava de algum tipo de ajuda. O gesto do então primeiro-ministro e da sua mulher significava nesse momento bem mais do que um simples acto de solidariedade pessoal. Significava também um tributo da memória a uma relação pessoal e política que fez da dupla Soares-Mota Pinto um motor crucial para a normalização do país na primeira década do pós-25 de Abril. Um livro recente do sociólogo João Pedro George (Mota Pinto, Biografia, ed. Contraponto, 911 págs.) dedicado ao líder do PSD que faleceu inesperadamente aos 48 anos, em Maio de 1985, é um guia precioso para se perceber essa relação entre dois homens politicamente moderados, unidos pelos valores da social-democracia, empenhados em amarrar Portugal na órbita das democracias europeias e convictos da importância da sociedade civil para desatar o nó do atraso. É também o relato que retira Mota Pinto de um esquecimento pouco ajustado à riqueza e diversidade da sua biografia política.

Depois da morte de Mota Pinto, Soares lamentaria numa entrevista ao jornalista Joaquim Vieira (citada na obra Mário Soares, Uma Vida, ed. A Esfera dos Livros): “Fiquei um bocado desamparado. Mota Pinto era o parceiro, era o amigo, era o tipo fixe que estava ali, em quem eu tinha confiança.” Sem o passado político ou a fleuma de Soares e sem o carisma de Sá Carneiro, Mota Pinto passou 11 anos na política activa entre a turbulência revolucionária e a estabilização do Bloco Central. No PSD, no Parlamento ou no Governo, Mota Pinto foi um político coerente e, como Soares, empenhado em sarar as feridas da revolução para que o país pudesse chegar a 1986 pronto para integrar a Comunidade Económica Europeia (CEE). Discreto mas determinado, enfrentou greves selvagens, bateu-se pela devolução de empresas nacionalizadas, apagou o fogo dos excessos da reforma agrária, suportou a permanente guerrilha interna do PPD e, lembra João Pedro George, teve um rasgo de humildade pouco comum nos políticos: “Depois de ter sido primeiro-ministro, aceitou ser o número dois de Mário Soares por considerar que essa aliança era crucial para o futuro do país.”

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Uma relação de amizade e confiança: Primeiro encontro entre Carlos Mota Pinto e Mário Soares para a formação do Bloco Central luis vasconcelos/lusa

Quando acontece o 25 de Abril, Mário Soares tinha já um longo rasto de militância no combate à ditadura, enquanto Carlos Mota Pinto tinha limitado a sua vida a uma brilhante carreira na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde se tinha destacado como o melhor aluno da sua geração. Nascido em Pombal em Julho de 1936, Mota Pinto torna-se uma lenda na universidade pela sua inteligência e saber e, como acontecia aos melhores, entra para a carreira docente. Nessa sua fase de vida, confronta-se com duas experiências que acabariam por moldar a sua personalidade política. Mobilizado para a Guiné em Julho de 1961, lê o livro clássico da autodeterminação Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon (pensador marxista descendente de escravos da Martinica), e consolida as suas ideias avessas ao regime. O outro momento inspirador da sua personalidade política acontece numa permanência de meses, no Outono de 1968, na então República Federal da Alemanha, onde fora estudar. Aí, Mota Pinto toma conhecimento do novo programa do SPD alemão, que em 1959 afirmara em Bad Godesberg a renúncia ao marxismo e abdicava de lutar contra a extinção do capitalismo (insistia apenas na sua reforma).

De regresso a Portugal, Mota Pinto traz essa semente de dissidência ao regime que aplica não através da militância no combate ao regime, mas através de uma resistência passiva. Com a academia coimbrã em ebulição, alega objecção de consciência para recusar ser instrutor de processos contra alunos. No célebre caso de Octávio Cunha (que rasgou a sua sentença de expulsão da universidade na cabeça do reitor), Mota Pinto aceita liderar a sua defesa. A memória das suas causas persistiu. Com a viragem do regime em 1974, a Universidade de Coimbra assiste a uma vaga de saneamentos políticos. Mota Pinto tem o seu lugar assegurado, tal como Joaquim Gomes Canotilho ou Vital Moreira. O seu passado recente no apoio aos estudantes era conhecido. 

Não admira por isso que, logo após a queda do regime, Mota Pinto fosse procurado pelo PS e pelo PSD para se filiar. António Arnaut convidara-o a aderir ao PS ainda antes do 25 de Abril, mas Mota Pinto recusou. No núcleo original do PSD estava Artur Santos Silva, que o conhecera em Coimbra e o convidara a dar um parecer jurídico na feroz guerra judicial que opôs Cupertino de Miranda, o homem forte do BPA, a António Champalimaud. Mota Pinto, companheiro de boémia de Santos Silva, aceita participar. Na leva são ainda convidados Barbosa de Melo e Figueiredo Dias, que com Mota Pinto formariam a base do Grupo de Coimbra – que se tornaria fundamental na definição programática de um partido que vacilava entre o liberalismo puro e duro de Sá Carneiro, a ala esquerdista de Emídio Guerreiro e o modelo alemão de Mota Pinto e os seus pares de Coimbra. Num célebre encontro no Palácio Hotel da Curia, a 12 de Maio de 1974, esboça-se a identidade do PPD com base num documento do Grupo de Coimbra. Previa, entre outras medidas, a co-gestão das empresas e a “planificação e organização da economia”.

Sentido táctico para a política

Nos primeiros meses de militância, Mota Pinto começa a mostrar um agudo sentido táctico para a política. No Outono de 1974, subscrevia já a tese de que o “inimigo principal” era o “totalitarismo comunista” e a principal prioridade do partido era “viver e crescer” entre a tempestade revolucionária. No ano seguinte, a vertigem revolucionária acelera após o 11 de Março, e o PPD, como o PS, apoia o Pacto MFA-Partidos (que conferia ao MFA o controlo do poder para lá do processo constituinte) e subscreve o programa das nacionalizações. “Nesse momento, a ideia dominante era, tinha de ser, a sobrevivência”, notaria Mota Pinto. O que está subjacente nesta leitura é a noção de que o PCP e a extrema-esquerda só poderiam ser derrotados se as eleições para a Assembleia Constituinte se realizassem como prometido em Abril de 1975. Se “o PSD, o PS e até talvez o CDS tivessem rejeitado a subscrição do pacto, tenho por certo que as eleições não se realizariam”, acreditava Mota Pinto. Mas as eleições fizeram-se e deram a vitória aos “partidos burgueses”: o PS fica com 37,9% dos votos, o PPD com 26,4%, o PCP limita-se a 12,5%, o CDS a 7,6% e o MDP a 4,1%.

Garantida a legitimidade democrática, havia ainda que lutar contra a reclamada legitimidade revolucionária do PCP, da extrema-esquerda e de parte fundamental do sector militar. As ruas, a máquina do Estado, a comunicação social e grande parte das autarquias permanecem sob o controlo do PCP. No Verão Quente, a situação extrema-se. Só o PS e Soares parecem ter força para aguentar o dique da democracia e do pluralismo. Mota Pinto chega a propor que o PPD reconheça ao PS o papel de farol na luta contra Vasco Gonçalves. O PPD era ainda demasiado à direita para poder levantar a cabeça. “Há tempos para voar de coruja e tempos para voar de falcão”, dizia Mota Pinto.

Eleito deputado, Mota Pinto sente-se como um peixe dentro de água na definição da primeira Constituição democrática. Lidera a bancada do PSD e ganha influência. O nome do Parlamento, “Assembleia da República”, é da sua autoria – “Ele ligou-me felicíssimo a dizer que tinha sido o autor da designação. Foi talvez o momento em que eu senti mais a sua felicidade na política”, recorda Fernanda Mota Pinto.   

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Encontro PPD/PSD em finais de 1974 (na fotografia, Sá Carneiro ao meio e à sua esquerda, Mota Pinto e Marcelo Rebelo de Sousa) in "mota pinto, biografia", de João Pedro George (ed. Contraponto)

Heroísmo militante, heroísmo abnegado

Sá Carneiro, que fora para Londres em Maio de 1975 por motivo de doença (uma escoliose) e ficara em convalescença no Sul de Espanha (o livro sugere que ele considerava a sovietização uma fatalidade e admitia não voltar ao país), regressa em Setembro e critica a estratégia de apaziguamento do PPD. Em várias entrevistas a jornais, rejeita o apoio ao Pacto MFA-Partidos, a aproximação ao PS ou o apoio ao Documento dos Nove, assinado por uma ala do MFA que contesta Vasco Gonçalves e expõe fracturas no interior do movimento. Mota Pinto consideraria as críticas “inoportunas” e defendia que a posição do PPD “não terá sido uma política de heroísmo militante, mas de heroísmo abnegado; não terá sido uma política de martírio público, mas de sacrifício oculto e interior”.

O partido tem de se sujeitar a mais um braço-de-ferro entre a liderança e as facções internas. Um Conselho Nacional épico, realizado na Estalagem Via Norte, na Maia, a 27 e 28 de Setembro de 1975, determinaria o rumo do PPD. O que está em causa é Sá Carneiro. Vasco Graça Moura ou Artur Santos Silva discordam do seu regresso automático à liderança. Barbosa de Melo ou António Marques Mendes apoiam-no. Emídio Guerreiro ou Miguel Veiga tecem duras críticas. Mota Pinto resguarda-se – estava na primeira linha para uma escolha alternativa. Sá Carneiro sobreviveria após um discurso histórico que dura das duas às oito da manhã. “Faz o melhor improviso e mesmo o melhor discurso de toda a sua vida”, diz Marcelo Rebelo de Sousa na obra de João Pedro George.

Mas as feridas estavam abertas e no Congresso de Aveiro em Dezembro desse ano uma moção de Mota Pinto (“Plataforma Social-Democrata para o Socialismo”) recebe o apoio de 30 deputados. Era um novo empurrão do PPD para a esquerda e uma censura ao pendor mais liberal de Sá Carneiro. “Nunca o nosso partido poderá tornar-se um partido conservador, um partido defensor do statu quo económico e social ou de uma simples racionalização e modernização do capitalismo”, dizia a declaração que propunha a extinção das classes sociais através de um socialismo humanista e personalista. Para que a declaração fosse discutida, era proposto um adiamento do congresso. Sá Carneiro opõe-se. O congresso faz-se, mas sob enorme tensão. Pelo meio, Sá Carneiro ensaia uma “ameaça teatral de demissão”, cria “um ambiente de intolerância e paixão desenfreada” e de “coacção psicológica”, segundo Mota Pinto. E ganha o apoio dos delegados.

Mota Pinto diria em nome dos derrotados que o partido se tornara “um partido autocrático”. O PPD cinde-se. Vinte e um deputados, entre os quais Carlos Mota Pinto, saem do PPD. Membros do partido com assento no Governo, como Artur Santos Silva (secretário de Estado de Tesouro), Carlos Macedo e Vasco Graça Moura demitem-se em solidariedade com o grupo dissidente.

Tempos difíceis

Fora do PPD, Mota Pinto regressa a tempo inteiro à universidade. Na prática, nunca deixaria o Direito. “Todos os sábados de manhã ia à faculdade, mesmo quando foi primeiro-ministro. Ele gostava tanto da política como da faculdade”, diz ao P2 Fernanda Mota Pinto. Em 1976, publica a sua Teoria Geral do Direito Civil, “um dos livros incontornáveis da literatura jurídica portuguesa”, segundo Joaquim Gomes Canotilho. Mas mantém um pé na política. Integra a comissão de apoio à eleição de Ramalho Eanes para a Presidência. E, após a vitória do PS nas primeiras eleições legislativas, Mário Soares decide chamá-lo ao Governo. As suas teses à esquerda do PPD oficial aproximavam-no do PS. O seu papel na Constituinte não fora esquecido. Cabe-lhe a pasta do Comércio e Turismo, no qual faz regressar à iniciativa privada duas dezenas de empresas, como o Pão de Açúcar ou a Torralta. Defende que Portugal teria de aprender a viver sem um défice permanente. O país teria de “aprender a contar sobretudo com o nosso próprio esforço”, dizia.

Na Universidade de Coimbra, onde se licenciou em Direito sendo um destacada aluno da sua geração in "Mota Pinto, Biografia", de João Pedro George (ed. Contraponto)
Professor em Coimbra, onde faz o seu pousio na vida política até 1981 in "Mota Pinto, Biografia", de João Pedro George (ed. Contraponto)
Com a mulher, Fernanda Mota Pinto, e os filhos dr
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Na Universidade de Coimbra, onde se licenciou em Direito sendo um destacada aluno da sua geração in "Mota Pinto, Biografia", de João Pedro George (ed. Contraponto)

A minoria parlamentar do PS e o clima turbulento condenam o Governo a um equilíbrio precário. Mota Pinto aprofunda a defesa de uma aproximação entre o PS e o PSD em favor do “bem-estar do povo português”. Não foi ouvido. O I Governo Constitucional cai em 8 de Dezembro de 1976. Segue-se o Governo de Soares com o apoio parlamentar do CDS e, quase de seguida, Eanes decide tomar as rédeas da situação e nomeia Nobre da Costa para primeiro-ministro. A experiência dura 17 dias. O Presidente ensaia uma nova tentativa para formar governo fora do quadro dos partidos. Mota Pinto é chamado e, mesmo sendo do PPD, o seu nome passa no crivo do Conselho de Revolução. Aos 42 anos, era o mais jovem primeiro-ministro da Europa.

No final de 1978, o país estava condicionado pelo programa de resgate do FMI. As greves multiplicavam-se (650 mil pessoas paradas a 13 de Novembro). A Zona de Intervenção da Reforma Agrária estava em sobressalto, no limiar da guerra civil. Na noite 22 de Janeiro de 1979, os telespectadores da RTP surpreenderam-se com a troca da novela O Astro pelo rosto grave e sisudo do primeiro-ministro. Com solenidade, Mota Pinto avisava que o país estava à deriva. O défice público estava incontrolado, a inflação galopava, a balança externa estava de pernas para o ar. Perante a situação, prometia “não enganar os portugueses”. Antecipava tempos difíceis e deixava uma nota de esperança: “Os problemas são muitos, os sacrifícios são grandes, mas a esperança é ainda maior.” 

Mota Pinto pode ter convencido o país, mas não convenceu o Parlamento. Só o CDS se dispôs a aprovar o seu orçamento (PS e PPD abstiveram-se, embora cinco deputados laranja tenham desobedecido à indicação de voto) e o PCP e a UDP impõem a sua derrota. Não havia volta a dar à sua opção política em favor da austeridade. Para ele, o caminho das pedras era inevitável. “Achamos que se não tivermos coragem de dizer ao país que, apesar do nível baixo que tem, tem estado a viver acima das suas possibilidades (…), se não pedirmos sacrifícios desta ordem, daqui a alguns anos ou a alguns meses, além dos sacrifícios fiscais é capaz de haver sacrifícios de outra ordem, o sacrifício das liberdades”, disse. Não fez valer a sua tese e regressou a Coimbra, onde permaneceu em pousio na política activa até Agosto de 1981.

Era de esperar que Sá Carneiro chumbasse o seu Governo – afinal, era um dissidente do PPD. Mas a decisão volta a dividir um partido em permanente convulsão, com 37 deputados, entre os quais Sérvulo Correia, Magalhães Mota, Guilherme d’Oliveira Martins ou Costa Andrade a abandonarem o PPD. O chumbo a Mota Pinto baseava-se numa cultura de ressentimento que muitos não toleravam. Porque, afinal, “o Governo Mota Pinto foi o primeiro que demonstrou que era possível governar sem ter como bordão básico a ideologia colectivista, sem complexos em relação ao PCP”, disse Costa Andrade a João Pedro George.

Bloco Central

Em 1979, o sistema partidário consegue finalmente um primeiro ensaio de alianças para a criação de uma maioria. A direita juntara-se em torno da Aliança Democrática e vence as eleições. Mota Pinto aproxima-se do PPD ao recusar o apoio à reeleição de Eanes, preferindo associar-se à candidatura de Soares Carneiro. A morte de Sá Carneiro em Camarate em Dezembro de 1980 escancara-lhe as portas. Regressará em Agosto de 1981, ainda a tempo de confirmar o estertor da AD. Em Dezembro de 1982, Pinto Balsemão está de saída da liderança do PPD e do Governo. Queixa-se de que é preciso “curar” o partido, que estava farto de “traições” e faltas de “comprometimento”. Mota Pinto está na primeira linha para a sua substituição. A 27 de Fevereiro de 1983, Carlos Mota Pinto é eleito líder do PSD. Tinha pouco tempo para disputar as legislativas que se aproximavam após a queda da AD.

Ainda nesse mês, Mota Pinto e Mário Soares reúnem-se em casa de Proença de Carvalho para celebrarem um pacto de cavalheiros que se revelaria histórico. Uma aliança entre os partidos do Bloco Central ganhava forma. Se as eleições fossem ganhas pelo PS, Mário Soares seria primeiro-ministro; se fosse o PSD a vencer, seria Mota Pinto. Apesar de o PS estar nessa altura em crise profunda (António Guterres foi saneado, Salgado Zenha, João Cravinho, Vítor Constâncio ou Jorge Sampaio afastaram-se), 34,6% dos eleitores apostaram na sua eleição (o PPD ficou com 27,2% após uma campanha em que, de acordo com a avaliação da jornalista Maria João Avillez, no Expresso, Mota Pinto foi “largado no terreno e praticamente entregue a si próprio durante 21 dias”). Com estes resultados, o Bloco Central avança. Personalidades como Marcelo protestam e consideram a aliança “incomportável com a nossa coerência política, com o nosso papel na sociedade portuguesa e com a herança de Sá Carneiro”. Mas o pacto com Soares cumpre-se. “Estou sinceramente convencido de que foi uma sorte para Portugal, e para mim próprio, o facto de Mota Pinto ser quem dirigia o PSD nessa altura”, diria Mário Soares mais tarde. 

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Bloco Central na Assembleia da República (na fotografia, Mário Soares ladeado por Almeida Santos, ministro de Estado, e Mota Pinto, vice-primeiro-ministro) in "mota pinto, biografia", de João Pedro George

O IX Governo Constitucional foi difícil. A revisão constitucional de 1982 normalizara o regime, mas a situação económica era crítica. O FMI é de novo solicitado para resgatar as finanças do Estado. O Governo está sob pressão permanente, mas Mota Pinto e Soares fazem um bloco blindado. Passam horas em reuniões no Palácio de S. Bento. Ambos gostavam da vida, dos livros e do confronto de ideias. Ambos tinham o hábito de descalçar os sapatos nas reuniões e por vezes tinham de ver onde parava o calçado de um e do outro. Mas o tempo e a dureza da crise abrem brechas. Uma proposta de despenalização do aborto que a bancada socialista apresenta sem negociação prévia com o PPD cai mal. Marcelo Rebelo de Sousa fustiga o Governo sob o pseudónimo de Agapito Pinto em ásperas crónicas no Diabo. No Congresso de Braga, em Março de 1984, Mota Pinto defronta as tendências da Nova Esperança, liderada por Marcelo, e as de Mota Amaral e João Salgueiro. Ganha, mas o partido permanece fracturado. O PSD era ao mesmo tempo poder e oposição ao Governo. “Comigo, o partido não será um mero conjunto de intelectuais, mas um partido com verdadeira expressão popular”, avisava.  

"Calúnias, não, calúnias, não"

Na mensagem de Ano Novo, o Presidente Eanes aumenta a tensão, dizendo que os dois partidos estavam a faltar aos seus programas. As negociações sobre o Orçamento adensaram a crise. Esta previsto para 1985 um défice de 9,5% do PIB. O PSD está de novo sujeito à fricção entre a liderança e as facções e volta a reunir-se no Bonfim, Porto, a 2 de Fevereiro de 1985. Mota Pinto queixa-se de novo da oposição interna. A crispação estava ao rubro. Rui Gomes da Silva, da linha de Marcelo e Santana Lopes, pergunta pelo destino dos dinheiros angariados pelo partido. Mota Pinto não ouviu a pergunta à primeira. A mulher envia-lhe um bilhete a perguntar se não respondia. Quando, ao ouvido, o informam sobre o seu teor, explode. Bate com as mãos na mesa e grita: “Calúnias, não; calúnias, não.” Marcelo confessaria mais tarde, segundo o Expresso, que estava previsto fazer perguntas sobre dinheiro, mas que Rui Gomes da Silva terá exagerado na forma. Rui Gomes da Silva diz ao PÚBLICO que não leu o livro e que não quer pronunciar-se sobre um acontecimento que teve lugar há mais de 30 anos.

Mota Pinto sai do Conselho, vai jantar a casa de Artur Santos Silva (pai), nas Antas. Aí recebe uma visita de Barbosa de Melo e de outros conselheiros para que reconsidere e regresse. Regressou na manhã seguinte, disse-se vítima de “terrorismo verbal” e fez depender a sua continuidade de uma votação clara e inequívoca de apoio por parte do Conselho Nacional. Ganharia a votação por maioria absoluta, mas por escassa margem. Demitiu-se. As bases protestam e saem em seu apoio. A distrital do Porto votaria por unanimidade uma moção na qual elogiava Mota Pinto por representar “a voz e a vontade das bases do partido, contrapondo-se ao poder dos barões de Lisboa”. Cem autarcas esperam-no em Lisboa, na sede do PSD, dia 5, com a palavra de ordem “nem Marcelo nem Salgueiro, Mota Pinto em primeiro”. Das 18 distritais, 14 estavam com ele.

Regressa a Coimbra. Os apelos a que reconsidere a demissão ou aceite disputar um congresso aos críticos aumentam. No horizonte, desenhava-se o conclave da Figueira da Foz. Mota Pinto hesita, adia, tergiversa, recusa-se abrir o jogo. Dizia querer afastar-se, mas ainda hoje é um mistério a resposta sobre se iria ou não disputar o congresso. A sua mulher garante que sim. Não teve, porém, tempo e oportunidade para exercer a sua vontade. No dia 6 de Maio de 1986, comeu cozido ao almoço e sentiu-se indisposto. À noite a indisposição manteve-se, mas os sinais não eram preocupantes. Morreria às nove da manhã seguinte com um aneurisma. Tinha 48 anos. Mais do que muitas figuras gradas do seu partido, a notícia abala Soares e abana os fundamentos do Governo do Bloco Central. A 18 e 19 de Maio jogava-se na Figueira da Foz a sorte do PPD e a do Governo.

O resto é conhecido. Cavaco Silva vai ao congresso fazer a rodagem de um Citröen BX e agrega à sua volta as bases do PPD que se tinham unido em torno de Fernando Nogueira ou de Eurico de Melo. É o herdeiro dos votos de Carlos Mota Pinto e da hostilidade do PPD profundo aos “barões”. Numa leitura contrafactual do congresso, João Pedro George admite que, se Mota Pinto não tivesse morrido dias antes, a história do país teria sido diferente. Como foi o que foi, Mota Pinto foi sendo esquecido com o passar do tempo. Fernanda Mota Pinto não quer avaliar o grau e a extensão desse esquecimento – diz apenas que seria de esperar mais empenho do PSD na homenagem a um dos seus líderes marcantes. Mas Carlos Mota Pinto era demasiado discreto para gerar brado, para suscitar memórias espalhafatosas ou para ser lembrado por incidentes ou soundbites. No fundo, nunca deixou de ser o professor de Direito sisudo, racional e institucional. O livro de João Pedro George permite-nos uma nova leitura sobre o seu percurso de vida. Porque, como diz o autor, o país não o está a lembrar “devidamente”.

Notícia corrigida: Cavaco Silva não foi ao congresso fazer a rodagem de um Renault, como estava escrito, mas de um Citröen BX.

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