Obrigado e desculpe, Mário Soares
Temos de agradecer a Mário Soares pelo seu extraordinário legado; e pedir desculpa por não termos sido dignos da sua herança.
Mário Soares deixou-nos e mais de meio país apressou-se a bater-lhe palmas e a dizer-lhe obrigado. Curioso: esse país grato não é o que a geração de 1974 sonhou e pela qual tanto se bateu. A política perdeu o encanto, o espírito de missão e a crença na construção de uma sociedade melhor. Portugal é hoje um país em sobressalto, com os fantasmas da dívida, da injustiça e da pobreza à solta. A Europa deixou de ser aquele lugar de sonho em que escreveríamos um novo capítulo após a perda da África. Mas, ainda assim, a grande maioria dos portugueses agradece a Mário Soares – porque sabe que nem ele nem a hoste dos democratas que inspiraram o 25 de Abril e ajudaram a derrotar as tentações totalitárias do Verão de 1975 são responsáveis pelo que aconteceu nas últimas décadas. Pelo contrário, Mário Soares é, como a maioria dos portugueses de hoje, vítima de um projecto traído pelos delírios da política nacional e pelos desvios da política europeia. Os que hoje lhe dizem obrigado deixam implícito um pedido de desculpas e o desejo de recuarem no tempo e voltarem a esse Portugal que um dia pôde sonhar.
A geração que tem hoje 40/50 anos não esteve à altura do legado do 25 de Abril. Falhou. Vai deixar aos filhos um país menos esperançoso. O adeus a Mário Soares serve para constatar essa dolorosa verdade. Repare-se que dizemos “obrigado” a Soares mais pelos seus primeiros 40 anos de percurso político do que pelos 30 anos que decorreram após a sua primeira presidência. É verdade que temos de agradecer ao Presidente Soares a onda “fixe” que libertou em vésperas da integração europeia. Mas o Soares presidente era já um homem de um tempo novo, um tempo de normalidade democrática que não quis ou não foi capaz de temperar. O lugar do sonho depressa foi ocupado por uma geração oca, deslumbrada com o novo-riquismo do dinheiro a crédito, sem densidade de vida nem de ideias, apenas ávida de facilitismo e propensa à cumplicidade venal com os amigos das negociatas.
Soares foi um homem de futuro até ao último dia, mas o que o país lhe deve radica nessa área do seu passado em que foi necessário lutar contra um regime mesquinho e desprezível que nos amordaçava e ensaiar um caminho em busca de um país aberto, moderno, europeu e cosmopolita. A sua grande luta entre 1975 e 1985 teve por base a firme convicção de que Portugal só seria capaz de sarar as feridas do fim do império e de varrer a pobreza material e moral do salazarismo se ancorasse o seu destino ao das democracias ocidentais. Hoje, essa missão pareceu fácil. Mas não foi. Foi duríssima. Lutar contra o poder da rua do PCP e da extrema-esquerda; minar o MFA por dentro; fazer comícios num clima de ameaça; apagar as dores de um país que, de súbito, encerrou um capítulo de cinco séculos de aventura colonial; resistir a uma comunicação social e a um aparelho de Estado infiltrado por inimigos políticos implacáveis; tudo isso exigiu exemplo e coragem.
Vencida essa batalha em Novembro de 1975 e consolidada a vitória nas primeiras legislativas de 1976, Soares empenha-se noutro combate que justifica o nosso “obrigado”: o combate da integração europeia. Uma vez mais, teve de se confrontar com o PCP, que, sendo um partido pouco dado à hipocrisia, fez questão de recordar estes dias “as profundas e conhecidas divergências” que manteve com o ex-Presidente. Soares fez tudo o que pôde para que o destino europeu se cumprisse. Até dois programas de ajustamento com o FMI. A Europa de hoje não é essa Europa confiante, generosa, crente na grandeza única de um projecto de paz e prosperidade que Soares conheceu. Mas, sendo uma Europa pior, é ainda a única referência que temos para poder saltar o muro da asfixia financeira, controlar o saudosismo salazarento, ou para nos protegermos contra os danos de uma elite política e financeira mais interessada no seu umbigo do que na sorte do país.
Soares foi fixe por tudo o que fez e é fixe por nos ter deixado o seu exemplo de moderação, de coragem, de inflexibilidade na defesa de princípios e valores e de flexibilidade na hora de tomar decisões difíceis – como em 1977 e 1983, quando o FMI aterrou na Portela. Claro que teve a ajuda de uma extraordinária geração de portugueses em que se incluíam Salgado Zenha, António Guterres, Jorge Sampaio, António Barreto, Medeiros Ferreira, Sousa Franco ou esse grande esquecido da história contemporânea portuguesa que foi Carlos Mota Pinto. A nossa dívida para com Soares (e para essa geração) existe por nos ter deixado um papel em branco onde se poderia criar um país novo, moderno, sem o radicalismo da I República nem o mofo da esquerda colectivista.
Com as presidências de Soares e as maiorias de Cavaco Silva, esse papel estava pronto e havia muitas possibilidades de lhe imprimir um projecto viável e esperançoso. Depois, veio a vertigem do betão de Cavaco, a modorra de Guterres, a fuga irresponsável e provinciana de Durão Barroso, o delírio daninho e opíparo de Sócrates, a ideologia corajosa, mas pacóvia, da redenção nacional pela via da austeridade de Passos Coelho e, finalmente, a suave melodia da sereia interpretada por António Costa que nos leva a ver o mundo como ele quer que seja visto.
Agradecer a Soares pelo país que nos deixou é festejar a democracia sólida ou o Estado social eficaz. O país é hoje muito melhor, mas as suas injustiças, a dívida, o Estado capturado pelos interesses, a pobreza e o desemprego são a prova de que ficámos a meio caminho. Podíamos e devíamos ter andado mais. Dizer obrigado a Soares é um acto óbvio de reconhecimento pelo que nos deixou – a democracia liberal, o Estado social, a Europa. Mas pedir-lhe desculpa pelo muito que falhou não é apenas uma forma de homenagear essa geração extraordinária de portugueses da qual Soares foi o mais completo representante: é também uma manifestação da vontade de recuperar os seus ideais e a sua energia, ranger os dentes, saber resistir às dificuldades sem propaganda nem demagogia e olhar com coragem para o futuro.