O meu Soares não foi o melhor Soares
Soares não teve sempre razão, mas teve razão nos momentos fundamentais, e essa é uma dívida inestimável que o país tem para com ele.
Quando comecei a ouvir fado e a gostar de fado, no final dos anos 80, Amália Rodrigues era já uma sombra da extraordinária artista que revolucionara a canção de Lisboa nas décadas de 50 e 60. Os seus espectáculos ao vivo eram penosos e o que a minha geração conhecia dela eram as paródias nos programas do Herman – cabeleira postiça, braços abertos, queixo levantado, “palminhas, palminhas”. A grande Amália, a maior artista portuguesa do século XX, tinha de ser procurada nos discos antigos.
Quando comecei a escrever artigos de opinião, em 2003, Mário Soares era já uma sombra do extraordinário político que esteve na primeira linha da luta pela democracia e pela liberdade nos anos quentes da revolução, e que nunca abdicou de sonhar com um Portugal europeísta. A guinada à esquerda da década final da sua vida é tão penosa quanto os últimos espectáculos de Amália, e tenho muita pena que tudo o que eu próprio escrevi sobre Soares tenham sido textos ácidos e críticas virulentas. Ele incomodava-me tanto mais quanto o seu presente me parecia em total contradição com o seu passado. O grande Soares, o maior político da democracia portuguesa, pertence a uma História à qual já pouco assisti – mas é lá que ele tem de ser procurado.
Não digo isto por desrespeito à sua memória. Bem pelo contrário: é para que a minha geração, e as gerações mais novas do que a minha, que apenas conheceram ao vivo o fervoroso defensor de Hugo Chávez e de José Sócrates, mais os discursos apocalípticos sobre o Portugal da troika, a caminho de uma nova ditadura (dizia ele) e onde já havia mais pobreza do que no tempo do Salazar – o Soares da Aula Magna, enfim, e de tantos artigos inconcebíveis no Diário de Notícias –, esse Mário Soares não é aquele que mais importância tem, nem aquele que vai ficar nos livros de História. Pelos jornais, pelas rádios e pelas televisões só têm praticamente desfilado pessoas que o conheceram nas décadas de 60, 70 ou 80. Abaixo dos 40 anos de idade, e muito em particular à direita, aquilo que eu noto é uma cortina de silêncio incómodo, composta por gente que não está para o elogiar porque não suportou os seus últimos 20 anos de vida, mas também não o quer criticar por respeito à sua morte.
Ora, Soares merece muito mais do que esse silêncio compungido, atitude que sempre declinou. Há que recusar a tese idiota de que Soares teve sempre razão, mesmo quando não o compreendíamos – porque Soares nem sempre teve razão, e no final da vida quase nunca teve razão –, tal como há que recusar a menorização do seu papel histórico, como se não tivesse sido ele a construir a primeira linha de resistência ao comunismo. Soares não teve sempre razão, mas teve razão nos momentos fundamentais, e essa é uma dívida inestimável que o país tem para com ele. Claro que é possível compor uma longa lista de amigos desagradáveis, favores suspeitos e casos mal explicados, tal como é possível considerar que Soares sempre agiu como pai do regime, e que – pior – o regime sempre o tratou como pai, dispensando-o de um escrutínio que reservava aos outros. É triste, mas é humano. O mais importante está longe de ser isso. O mais importante é aquilo que está escrito na nota que o Partido Comunista Português escreveu acerca da sua morte. Soares, lamenta o PCP, destacou-se “no combate ao rumo emancipador da Revolução de Abril”. Acreditem: não há mais belo obituário. É por causa desse combate que todos devemos tanto a Mário Soares.