Mário Soares, libertar a liberdade das “liberdades”
Não enveredou pela defesa de “liberdades” ou das “liberdades” (mesmo que “amplas”), mas sim, e sem mais, da liberdade. Na sua luta por uma democracia verdadeira, soube libertar a liberdade das “liberdades”.
1. Há coisas que não merecem dúvida: Mário Soares é a personalidade mais importante e marcante da democracia portuguesa. Depois do 25 de Abril de 1974, houve e há grandes figuras políticas, imprescindíveis ao triunfo e à consolidação da democracia, entre os militares, os três partidos democráticos (PS, PSD e CDS) e independentes ou membros de movimentos mais pequenos. Mas é justíssimo que se dê um lugar incomparável a Mário Soares. Pela sua omnipresença nos momentos fundamentais de afirmação da democracia, pela sua longevidade política, pelo historial na luta contra a ditadura. Não é, porém, a oposição ao regime salazarista que o singulariza, embora haja um ponto em que ele sobressai (mesmo assim ao lado de outros): a lucidez de se separar da via comunista, desde bem cedo, recusando substituir um modelo ditatorial por outro, de matriz marxista-leninista.
2. O que realmente dita a sua incontornável singularidade é o período histórico que vai de 1974-1985. E isso, basicamente, creio, pela defesa intransigente da liberdade enquanto valor em três frentes essenciais. É certo que, antes da revolução, revelou a sua lendária intuição quando funda em 1973 o Partido Socialista. Daí retirou duas vantagens que se haviam de mostrar determinantes. A primeira foi institucionalizar a sua riquíssima rede de contactos, especialmente no quadro da Internacional Socialista e, portanto, dos partidos sociais-democratas, trabalhistas e socialistas (especialmente europeus). A segunda, não menos útil, dispor já de um partido e de uma estrutura, quando o regime caísse, não deixando assim que o Partido Comunista – o único organizado na clandestinidade – ficasse só no terreno.
A primeira frente foi a oposição inquebrantável à deriva comunista de tipo soviético (ou eventualmente chinês, albanês ou simplesmente terceiro-mundista) que o PREC prenunciava. Para isso, não só foi um defensor intransigente da realização das eleições constituintes de 1975 e do respeito pelos seus resultados, como usou de todos os seus contactos internacionais, fora e dentro da área socialista, para evitar a realização da profecia de Kissinger de que acabaríamos como a “Cuba” da Europa.
A segunda frente jogou-a no evitar cair na hostilidade e perseguição religiosa da I República. Soares, na sua juventude, foi muito próximo de grandes vultos da I República e terá percebido que uma das razões do fracasso dessa experiência foi a “sanha” anti-religiosa e, em particular, “anti-católica”. Ele era agnóstico e laico, acreditava convictamente nas virtudes da laicidade. Mas rejeitou sempre a ideologia laicista, o banimento e a expulsão da religião e das religiões da esfera pública, a intolerância religiosa. Ao bater-se pela liberdade religiosa, pelo diálogo do Estado com as igrejas e, em especial no caso português, com a Igreja Católica, Soares demonstrou, uma vez mais, uma rara sageza política e democrática.
A terceira frente foi mais longa e tortuosa, mas nem por isso foi subestimada por Soares: a “desmilitarização” da política e a “civilização” do regime. Ele nunca aceitou que uma democracia verdadeira, por mais grata que estivesse aos militares que haviam conduzido a revolução e que haviam evitado a deriva comunista, pudesse estar sob tutela militar. A extravagância dos poderes de um Conselho da Revolução, a “obrigatoriedade” de uma chefia do Estado “militar” eram, na sua visão, entorses à genuinidade da democracia. Isso explica bem porque, em 1980, se opôs, contra o PS, à reeleição de Eanes, porque quis concluir a revisão constitucional de 1982 para pôr termo à intrusão militar e porque combateu tão fortemente a emergência de um partido montado a partir do palácio presidencial chefiado por um militar.
3. Mário Soares era um cosmopolita, conhecia bem as variáveis internacionais e geopolíticas de que dependia a democracia nascente. A consolidação da liberdade e do regime democrático que a garante dependia obviamente de uma rede internacional de suporte. Soares percebeu sempre a importância da NATO e do aliado americano e, por isso, mesmo sem Kissinger, passou horas infindas a “trabalhar” na residência do embaixador Carlucci. Sabia ainda que, mais do que os americanos, foram os governos e os partidos europeus do Ocidente que deram apoio à sua crença na vitória da democracia liberal. E sabia finalmente que, depois da erosão desastrosa – pela guerra longa e pela descolonização apressada – do sonho africano, era crucial criar uma nova ambição e aspiração para Portugal. O fim do Império deixaria um vazio que era necessário preencher com um novo desígnio. O projecto europeu, de integração na CEE e no seu espaço de liberdade e prosperidade, materializou esse desígnio. E garantiu, ao mesmo tempo, a impossibilidade de reversão do acervo democrático entretanto alcançado.
4. Depois, veio a presidência e a sua consagração. E a seguir a incrível mobilização cívica e política de mais 20 anos para todas as causas que tinha por justas. Uma palavra apenas para a presidência de Soares: o seu modelo de controlo, de moderação do poder governamental e até, aqui ou ali, de contra-poder pareceu-me sempre a melhor interpretação dos poderes presidenciais – que nem Sampaio nem Cavaco seguiram. Já o disse e escrevi múltiplas vezes: Soares compreendeu que um presidente mais vigilante e interventivo melhora a qualidade da produção política e, porque põe o Governo de sobreaviso, evita e previne o uso futuro de poderes extremos pelo Chefe de Estado. Também aqui Soares primou por uma rara sabedoria política.
5. Nestes dias, fica a lição de Soares, de resto, conhecida dos cultores do direito constitucional e da ciência política. Mário Soares não enveredou pela defesa de “liberdades” ou das “liberdades” (mesmo que “amplas”), mas sim, e sem mais, da liberdade. Na sua luta por uma democracia verdadeira, soube libertar a liberdade das “liberdades”. Mais do que liberdades, precisamos e merecemos liberdade!
SIM e SIM
SIM. Daniel Serrão. Um cientista crente, um pedagogo de fábula, um homem bom. Marcavam-no o sentido de humor e a disposição para repensar certezas. Tratava a morte por “tu”; mas tratou sempre a vida por “nós”.
SIM. Guilherme Pinto. Bem antes de ser presidente, mostrara a inteligência, a cultura e a dedicação a Matosinhos. Fiel às convicções, foi um autarca de grande visão. E sem ressentimentos, soube ser nobre e generoso na doença.