Marco Martins leva um murro da realidade
O filme São Jorge e o projecto teatral Great Yarmouth serão uma maneira de o realizador/encenador reiterar, em 2017, o seu desejo bipolar pela ficção e pela realidade. Ao encontro dos "despojos da crise".
Marco Martins chocou de frente com a realidade naqueles anos em que a crise se tornou soberana e de repente éramos um país de desempregados, emigrantes, novos pobres e banqueiros falidos — estes anos, corrige, apontando para a desolação ainda bem em carne viva dos lugares que com ele havemos de frequentar em 2017.
Havia a crise, em 2012, Marco chocou de frente com ela quando se envolveu, no projecto teatral Estaleiros, com 16 trabalhadores dos parados Estaleiros Navais de Viana do Castelo a quem devolvia auto-estima, a quem suspendia a angústia do desemprego, dando-lhes o protagonismo numa encenação de À Espera de Godot, de Samuel Beckett, que rapidamente se tornou num auto sobre o trabalho, ou a ausência dele.
2012 acabou, os Estaleiros Navais de Viana do Castelo também (história terrivelmente mal contada, essa, que em Abril levou a Polícia Judiciária a fazer buscas no Ministério da Defesa e nas instalações da empresa por suspeitas de corrupção e administração danosa; mas quem a contará?). Continuava a não haver rosto para a crise, apenas números, o mal-estar. Marco Martins começou então a pensar num vulto perdido que se movimentava nessa paisagem em mutação, sem saber para onde, sem saber o que deflagrava dentro dele. A seu lado, cúmplice no projecto de Viana do Castelo (e, antes e depois dele, no grupo de teatro que é a família artística de ambos, o Arena Ensemble), um actor que não escondia o desejo de interpretar no cinema um boxeur, porque tinha corpo capaz de aguentar pancada. As resistência iniciais do realizador (o boxe não lhe interessava...) foram cedendo, a ideia de um filme sobre estes tempos começou a impor-se (vencendo as dúvidas sobre a associação entre a “crise” e o “boxe”), e Nuno Lopes, era ele o actor, meteu-se no ginásio e no crossfit, entrou pela noite dentro de personagens violentamente divididas, esmurradas — boxeurs que trabalham como polícias e seguranças e que, para subsistirem, colocam o corpo à frente para resolverem cobranças “difíceis”. Foi conversar para a Margem Sul, para o Bairro da Bela Vista, gravando no iPhone horas e horas de histórias, preocupações e problemas, encontrando os rostos daqueles números.
Nascia a personagem de São Jorge, o filme de Marco Martins que chegará às salas portuguesas em Março e que valeu a Nuno Lopes, em Setembro passado, o prémio de interpretação na secção Horizontes do Festival de Veneza. Fica a impressão digital de uma personagem, Jorge, e simultaneamente de um actor, Nuno, porque quando se fala de um está-se a comprometer o outro: um boxeur (Jorge) que, para ficar com o filho, para ficar com a mulher, imigrante brasileira, deixa a sua passividade e atravessa a fronteira da moral, ele, tipo cheio de dívidas que ameaça quem tem dívidas; um intermediário, alguém de quem o realizador se serve para a realidade se pegar à ficção, alguém que, como um generoso distribuidor, está nos planos do filme para permitir que os outros contem as suas próprias histórias reais, aquelas, sobre a política e sobre o bairro, que tinham sido elencadas, discutidas, faladas entre todos durante horas de improvisação. Eis a impressão digital deste filme, declinação singular — belíssima — das chamadas “ficções do real”: São Jorge pode parecer filme de género, film noir, especificamente, com aqueles passos dados em direcção ao documento da realidade como deram nos anos 40 e 50 Jules Dassin, Robert Rossen ou Henry Hathaway, mas resulta justo, nobre, a ficção garante e contém a vitalidade das histórias reais. (E se encontramos em Jorge a angústia existencial do insone e vigilante Travis Bickle do Taxi Driver, de Scorsese, faz todo o sentido, foi um dos filmes na cabeceira do actor Nuno Lopes, que em declarações ao PÚBLICO explicitava uma genealogia, “são santos no inferno”).
Numa outra cidade
Com a personagem de Jorge, Marco Martins continua a olhar Nuno como obsessivo guardião do espaço familiar — recordam-se de Alice, a colaboração entre os dois há uma década? A família é o espaço onde tudo vai acontecer. E com São Jorge o realizador continua a fazer de uma cidade uma aventura plástica no desconhecido.
Mas 2017 será também o ano em que Marco Martins se aventura numa outra cidade, num outro país, numa outra crise, ainda que infiltrada pela nossa, pela dos nossos (Nuno Lopes irá com ele, mas para ficar nos bastidores, como em Estaleiros — e Beatriz Batarda também): o vaivém entre ficção e realidade, entre os processos experimentados no cinema e o desejo de os prolongar no teatro, em objectos genuinamente comunitários como o de Viana do Castelo (ou, antes, o que o pôs a desconstruir um Shakespeare, Romeu e Julieta, com uma comunidade cigana de Santa Maria da Feira, no projecto Baralha), continuará muito longe daqui, numa decrépita estância balnear vitoriana do Norte da Inglaterra onde desde 2005 cerca de dez mil portugueses passam nove horas por dia a retalhar e a desossar perus por salários impróprios para locais (pelo menos até vir o “Brexit”).
Great Yarmouth (ou Bernardo Mateus, o título ainda está em construção) é o grande projecto de Marco Martins para 2017, na sequência de um convite — do mesmo Renzo Barsotti que o levou em 2009 à Baralha e em 2012 aos estaleiros — para montar uma peça de teatro com um grupo de 20 imigrantes portugueses no coração da indústria de transformação alimentar britânica. Que é também, descobriu Marco entretanto, quando Great Yarmouth fez o seu vistoso coming out como a quinta cidade mais eurocéptica de toda a Inglaterra (71,5% de votos “leave” no referendo de 23 de Junho), o coração do eleitorado “Brexit”. O que isso fará à comunidade que a crise em Portugal para ali deslocou é uma incógnita, e é em cima disso, dessa “realidade em mutação”, que trabalharão, o que torna tudo, diz o encenador, “mais aliciante”.
Ao longo do ano, Marco Martins e a sua pequena equipa de dois actores-facilitadores tratarão de levantar as histórias reais dos homens e das mulheres (de todas as idades, de todos os graus de escolaridade, de todas as classes sociais, de todas as regiões do país) que de dia prepararam perus de Natal em gigantes como a Bernard Matthews (Bernardo Mateus, na muita peculiar língua-franca destes deslocados, outro assumido objecto de trabalho, antecipando um espectáculo entusiasticamente bilingue) e à noite disputam os karaokes de restaurantes, bares e cafés que antes da explosão dos voos low-cost serviram gerações de ingleses em veraneio e agora servem bacalhau com natas (os hotéis e os parques de campismo “gigantes”, entretanto, transformaram-se em enormes unidades de alojamento para trabalhadores deslocados).
Depois da estreia em Maio de 2018 no Norwich & Norfolk Festival, a peça que estará todo este ano em construção passará pelo LIFT — London International Festival of Theatre e acabará por chegar ao Teatro Maria Matos, em Lisboa. Talvez possa vir também a ser um filme, diz Marco Martins, por enquanto incapaz de dissociar do cinema de Mike Leigh ou de Ken Loach a depressão que o efeito combinado do declínio do turismo e da subida acentuada da imigração (sobretudo do Sul e do Leste da Europa) foram agravando nesta cidade definitivamente working class (casais de fato-de-treino com carrinhos de bebé numa marginal já muito descaracterizada e sempre batida pelo vento, descreve-nos, muito graficamente).
Essa Great Yarmouth — a do colossal desemprego não-qualificado do Reino Unido, mas também do seu bem mais avantajado sistema de protecção social, “apesar das Thatchers e dos Camerons” — estará sempre lá, mas não será, não é essa a ideia, o centro dos acontecimentos. A Inglaterra tem os seus cineastas políticos, Marco Martins está lá para documentar outra coisa: como a família portuguesa se está a transformar lá fora, por exemplo. “Há transformações muito interessantes nas pessoas que para lá emigraram, nalguns casos por efeito dos mecanismos de protecção social: mais casamentos, mas também mais divórcios. Ou muita gente que volta a estudar, por causa dos incentivos.” Muito mais tatuagens, muito mais piercings, muito mais saídas à noite do que quando estavam “cá”.
Para ele, enquanto autor, o projecto Great Yarmouth será — como o foi São Jorge, como o são todas as suas idas ao cinema, todas as suas idas ao teatro — uma maneira de reiterar o seu desejo bipolar pela ficção e pela realidade. “Nunca fugi ao trabalho de actor — tenho aliás um grande fascínio por ele. Mas todos estes processos com não-actores deram-me a descobrir que é possível trabalhar com a verdade. Quando começo a fazer o São Jorge e a ir para o bairro, para o boxe... eu não quero ter actores a fazer as pessoas que lá fui encontrar. Mas posso ter actores a contracenar com elas em vez de as reproduzir — o que põe tudo num sítio muito diferente.” De resto, o que acaba de fazer no teatro (uma encenação de As Criadas, de Genet, em que pela primeira vez dispensou figurinos e cenários, para ter tudo mais cru) e o que lá fará a seguir (um espectáculo a estrear também em 2018, mas no São Luiz, totalmente centrado no trabalho de actor, instância que cada vez lhe interessa mais do que a da personagem) continuará a ir por aí.
E continuará a ir em direcção a estas pessoas que são “os despojos da crise” — uma crise que está longe de ter acabado, também é essa a verdade que ele quer contar desde que lá atrás, numa galáxia que nunca deixou que se tornasse muito distante (alguns dos 16 trabalhadores dos estaleiros de Viana do Castelo com que em 2012 fixou a lenta morte da empresa voltam a ser actores no seu novo filme), descobriu um poderoso meio termo entre a ficção e o documentário. Desvincular-se dessas pessoas, aliás, “não se faz, nunca se faz”: “Continuo a acompanhar a vida dos trabalhadores dos estaleiros de Viana, continuo a acompanhar a vida das pessoas do bairro onde fiz o São Jorge, continuo a ir ao boxe — e já passou um ano desde as filmagens. Ficam parte da tua história, ficam parte da tua família.”
Não, não estaria certo dizer que Marco Martins nunca mais se refez do choque com a realidade; o que está certo é dizer que nunca mais deixou de o provocar.