Há populistas e há vigaristas
No início deste ano crucial para a Europa, vai já sendo uma questão de sobrevivência reconhecer que há populistas e há vigaristas. Só raramente é que não são os mesmos.
Uma das características da política hoje é haver um grupo de pessoas que se ocupa a chamar aos seus adversários, de preferência sem justificação, traidores, corruptos, desonestos e mentirosos. Em troca, são chamados populistas. E ficam a ganhar.
Uma das minhas resoluções de Ano Novo é não lhes fazer esse favor. Há populistas e há vigaristas. Populistas são aqueles que alegam encarnar a única voz do povo, em diversas variantes, mais ou (geralmente) menos sérias. Àqueles que se dedicam, em nome da nação, a atacar a UE, os estrangeiros e o cosmopolitismo (incluindo por arrasto os direitos humanos, talvez a mais cosmopolita das ideias) eu chamo de nacional-populistas. Os que o fazem a partir de uma posição de direita e extrema-direita, glorificando a figura do chefe e as virtudes da violência, mal disfarçando o seu racismo e ódio ao pluralismo, são representantes daquele fascismo que não existiu só na Itália dos anos 20 mas que se vai reinventando hoje. E depois há toda a espécie de oportunistas, vigaristas e charlatães que os acompanham. E é preciso chamá-los pelo nome.
O PÚBLICO de sexta trouxe um desses casos: Claudio Borghi, político italiano e (diz-se que) futuro ministro das Finanças da Liga Norte se esta chegar ao poder. Borghi apresenta-se como economista e especialista em arte, embora a sua atividade intelectual em ambas as áreas seja pífia. Na imprensa começou por escrever crónicas que passaram despercebidas até ter descoberto o filão antieuro que o alcandorou a conselheiro do líder da Liga Norte, Matteo Salvini. Anda pela Europa — foi entrevistado também pelo conhecido jornalista eurocético Ambrose Evans-Pritchard, do Daily Telegraph — oferecendo o seu plano para a saída do euro.
Aqui entra a parte do charlatanismo. Borghi não tem um plano para a saída do euro. Por vezes, assume-o, dizendo que “não se revela o plano aos adversários”. Outras vezes, remete os detalhes para a rubrica de “dificuldades de implementação” iguais às de qualquer plano — só que com a diferença de este poder destruir as pensões e salários dos seus concidadãos e envolver o seu país em batalhas ruinosas, como estes magníficos patriotas adoram fazer. No fim, admite que não espera que a Itália saia do euro, mas que Le Pen ganhe as eleições e leve a França à frente. Uma boa definição: o autor de um plano pela saída do seu país do euro é frequentemente alguém que espera que outro país saia do euro primeiro.
Nos pormenores que lá vai tendo de apresentar, Borghi diz que redenominará as dívidas em euros da Itália não em novas liras, mas antes, numa arrebicada homenagem aos Medici, em florins. Partindo do princípio que os tomadores de dívida italiana não concordem, porque os seus contratos estão em euros, aqui temos a receita para que estes metam a Itália em tribunal. A seguir Borghi diz que pagará a pensionistas, fornecedores e assalariados com papéis denominados em dívida italiana, ou seja… com papéis. Às vezes, nem sequer com papéis, uma vez que “isto se pode fazer pela Internet”. De qualquer forma, com nada que tenha valor legal no quadro da UE, de onde, curiosamente, Borghi não quer sair (porque deseja — e sobretudo precisa — continuar no mercado único). Não saímos disto: para afirmar a sua nova moeda soberana, a Itália teria de sair da UE; se não sai, qualquer pessoa pode derrotar o Estado italiano em tribunal por ser paga em papéis ou, quiçá, em tweets de Claudio Borghi.
Enfim. Há excelentes razões para criticar todo o projeto do euro e sobretudo a sua implementação. Há até razões sérias para continuar à procura de planos praticáveis para sair do euro. Mas no início deste ano crucial para a Europa, vai já sendo uma questão de sobrevivência reconhecer que há populistas e há vigaristas. Só raramente é que não são os mesmos.