Balbúrdia na política externa norte-americana
Nesta altura — e não apenas por culpa de Trump —, os EUA estão num dos pontos mais baixos da sua influência no pós-II Guerra Mundial.
1. Se o assunto não fosse dos mais circunspectos, a fase de transição de Barack Obama para Donald Trump poderia ser um guião de um filme satírico mais ou menos hilariante. Nos últimos dois meses de 2016, sucessivos episódios da política externa norte-americana foram particularmente desconcertantes. Fizeram-me lembrar uma bizarra sátira aos westerns feita Mel Brooks nos anos 1970, intitulada em Portugal “Balbúrdia no Oeste” (Blazing Saddles). O filme estava cheio de situações insólitas e absurdas que ridicularizavam o falso moralismo, os preconceitos racistas e a ganância desmedida de partes da sociedade norte-americana. Num outro plano, mas com muitos traços estranhos e por vezes quase absurdos, a política externa dos EUA, nesta fase de transição de poder, tornou-se uma balbúrdia bem mais séria.
2. Os últimos episódios surgiram ligados ao Médio Oriente e à Rússia. O Presidente em final de mandato (Barack Obama) e o seu Secretário de Estado (John Kerry) adoptaram posições de política externa não usuais, tendo em conta ser uma fase de transição de poder para o novo Presidente e estas não terem sido concertadas com este. Obama e Kerry fazem diplomacia a partir da Casa Branca, em Washington, pelos canais oficiais do Estado. Ao mesmo tempo, dado estarem em final de mandato, sabem que tomaram decisões que serão mais ou menos inconsequentes para o seu governo. Por sua vez, o novo Presidente eleito, mas ainda não em funções (Donald Trump), actua a partir da Trump Tower, em Nova Iorque. Pelas redes sociais (Twitter) e com chamadas telefónicas a líderes internacionais, faz diplomacia paralela (uma contra-diplomacia na realidade). Essencialmente, propõe-se reverter a política externa de Obama após o dia 20 de Janeiro de 2017 — data da sua entrada em funções —, em quase tudo que este fez de emblemático.
3. O Médio Oriente já normalmente é complexo e propenso à confusão política. Mas, nesta fase de transição de poder na potência hegemónica, a situação adquiriu contornos insólitos. Alguns dos aliados mais importantes dos EUA no Médio Oriente (a Turquia e Israel, a primeira até membro da NATO), estão em rebelião. A balbúrdia instalada é propícia a atitudes impensáveis noutros contextos. No caso da Turquia, o Presidente Recep Tayyip Erdogan, fala cada vez mais grosso contra os EUA. Acusou a coligação por estes liderada no Iraque e na Síria de apoiar o Daesh e ter provas disso. Na peculiar concepção de terrorismo de Erdogan estão incluídos os grupos curdos, a principal fonte de resistência aos avanços do Daesh, em 2014 e 2015. Ao mesmo tempo que fazia as acusações de apoio ao Daesh (que os EUA consideraram ridículas e sem fundamento), Erdogan convidava a Arábia Saudita e o Qatar a participarem na cimeira do Cazaquistão prevista para Janeiro de 2017. Trata-se de uma iniciativa russa para a paz na Síria. A isto podemos juntar o cessar-fogo negociado e apoiado pela Turquia e pela Rússia, que entrou em vigor a 29/12. Dificilmente um inimigo faria mais para contornar a influência dos EUA. Mostra cruamente a perda de autoridade da política externa de Obama e Kerry no Médio Oriente.
4. As relações entre os EUA e Israel atingiram um dos pontos mais baixos de sempre. A resolução 2334 (2016) do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 23/12 foi a “prenda de Natal” de Obama e Kerry para Benjamin Netanyahu. Pela primeira vez, os EUA não vetaram uma resolução que condena os colonatos israelitas na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, ou seja, nos territórios conquistados na guerra de 1967 aos palestinianos. O Primeiro-ministro de Israel, Netanyahu, acusou Obama e Kerry de terem alimentado a iniciativa nas Nações Unidas. No meio das jogadas de bastidores, Israel terá abordado a Rússia para o adiamento da votação. Esta teria mostrado compreensão dizendo estar pouco satisfeita com o texto da resolução. (Cinismo de Vladimir Putin e de Sergey Lavrov, pois a Rússia votou também a favor). Em qualquer caso também aqui a influência dos EUA está em retrocesso. É politicamente significativo Israel ter tentado a mediação da Rússia. Esta tornou-se uma potência incontornável no Médio Oriente, ainda que pagando um preço relativamente elevado: entre outras perdas, a recente morte a tiro do embaixador russo na Turquia mostra bem isso.
5. As relações de Obama e Kerry com Netanyahu sempre foram frias. O fracasso da última iniciativa de paz, em 2014, e o acordo nuclear com o Irão, em 2015, deixaram ambos descontentes, embora por razões opostas (os EUA pelo fracasso da iniciativa de paz no conflito israelo-palestiniano; Israel pelo acordo sobre o programa nuclear do Irão). No seu último grande discurso, Kerry acusou o governo de Netanyahu de fazer perigar os esforços de paz e a solução de dois Estados. Foi essa a justificação para a abstenção dos EUA na votação da resolução do Conselho de Segurança de 23/12. Quanto a Trump, na sua diplomacia paralela pelo Twitter, atacou a política de Obama e Kerry em relação a Israel, a quem pediu para se “manter forte” pois “20 de Janeiro está quase a chegar”, ou seja, vai ser revertida. Mas o seu ataque foi dirigido também às Nações Unidas. A ONU pode sofrer sérios danos colaterais desta disputa entre Obama e Trump. As críticas do Partido Republicano à organização são antigas. Muitos vêem-na como despesista e um empecilho ao interesse nacional em matéria de política externa. Se Trump estava à espera de um pretexto para cortar no financiamento da ONU — os EUA suportam mais de 20% do orçamento, sendo o maior contribuinte —, Obama e Kerry deram-lhe um perfeito. Se for esse o cenário, António Guterres, o novo Secretário-Geral, vai liderar uma organização bloqueada em termos políticos e financeiros.
6. A sui generis diplomacia do Twitter e de chamadas telefónicas de Donald Trump já provocou vários sobressaltos, quer nos EUA, quer entre os seus aliados europeus, asiáticos e do Médio Oriente, quer nos seus inimigos. O governo de Pequim da República Popular da China ficou completamente irritado com uma hipotética mudança de posição sobre a questão de Taiwan (Formosa no nome tradicional em português). Mas o maior sobressalto internacional foi provocado pela intenção de modernizar e expandir o arsenal nuclear norte-americano, até que o mundo “ganhe bom senso”, nas palavras de Trump. Foi mais uma declaração em rota de colisão com a política externa e a estratégia de segurança militar de Obama. Este, várias vezes durante os seus dois mandatos apontou ter como objectivo a redução do arsenal nuclear. Aspecto curioso: a declaração de Trump ocorreu no mesmo dia em que Putin manifestou similar intenção de modernização e aumento das capacidades nucleares. Nova corrida aos aumentos à vista, a fazer lembrar a Guerra-Fria com a União Soviética? Talvez não.
7. Na visão do mundo de Trump, os grandes inimigos são a China, o islamistas-jihadistas do Daesh e o Irão. A declaração de Trump parece mais um convite à Rússia para uma parceria na manutenção da supremacia militar e nuclear, com o objectivo conter os novos aspirantes a grandes potências mundiais e regionais. Independentemente dos seus eventuais méritos e problemas que levanta, esta aproximação à Rússia é, por princípio, inconcebível para Obama, Kerry, Clinton e muitos republicanos. É neste contexto que se tem de interpretar a decisão de Obama de expulsar trinta e cinco diplomatas russos acusados de tentativa de interferência nas eleições presidenciais de 8/11. A resposta de Putin, de não retaliar expulsando diplomatas norte-americanos, e de esperar por Trump iniciar em funções (decisão logo elogiada por Trump no Twitter), é parte deste jogo estratégico. É mais uma amostra da bizarra situação de duas políticas externas paralelas em curso nos EUA. Para já, Putin, indiscutivelmente hábil do ponto de vista estratégico, é o maior ganhador. Nesta altura — e não apenas por culpa de Trump —, os EUA estão num dos pontos mais baixos da sua influência no pós-II Guerra Mundial. 2017 e os anos seguintes mostrarão se é uma situação conjuntural ou uma tendência estrutural de declínio norte-americano.