A fabulosa comunidade homossexual
Essa comunidade de que tanto se fala é uma pura ficção onde se projectam alguns anacronismos e muitas ideias feitas.
Entre os muitos nomes que entram habitualmente em proposições com sentido mas sem referente, gostaria de evocar dois que pertencem à mesma classe: o unicórnio, que ganhou títulos de nobreza na literatura fantástica, e a comunidade homossexual, em uso na fantástica tagarelice dos media. Destas duas inexistências, escolho falar da segunda. Supor que existe uma coisa chamada comunidade homossexual implica conceber um grupo homogéneo, dotado de um conjunto de ideias e de objectivos bem identificáveis. Dos pressupostos comunitários, caracterizados por uma violência intrínseca, decorrem os critérios de inclusão e exclusão, de identidade e diferença, de pertença e recusa. Nas versões mais próximas de um discurso sociológico, a comunidade homossexual tem a condição de sujeito político e é composta por militantes. Como é fácil perceber, estas representações de uma comunidade mais não fazem do que reconfigurar quer os movimentos homossexuais, integrados na luta política e na história social e cultural, que tiveram o seu auge nos anos 70 do século passado, quer um comunitarismo homossexual que se desenvolveu em guetos nas grandes metrópoles. A fábula responsável pela crença de que existe uma comunidade homossexual (ou LGBT, numa versão alargada e mais actual) chega mesmo ao ponto de identificar os seus intelectuais orgânicos e porta-vozes.
A ideia de comunidade homossexual, não designando nenhuma entidade formalmente constituída, mas apenas uma abstracção estatística ou uma ficção menos fabulosa e inocente do que os unicórnios, tem origem numa generalização que expropria os indivíduos da sua singularidade e os rasura. A comunidade homossexual é como a noite onde todos os gatos são pardos. Esta gente que faz associações de grupo e cria ficções identitárias transforma os indivíduos em marcas, em portadores de uma bêtise, de uma estupidez, que é afinal a de quem os nomeia como comunidade. Supor que os indivíduos homossexuais são representáveis numa comunidade fundada em pressupostos de pertença e identidade é próprio dos discursos tendencialmente essencialistas. Começa-se na “comunidade homossexual” e acaba-se a denunciar os lobbies gays, a clamar pela Família em vias de destruição, pela Civilização ameaçada e pelo Ocidente em declínio. Todo o processo identitário, enraizado muito profundamente nas nossas representações colectivas, tem uma grande capacidade em maquilhar-se, mas é de uma violência constante.
Ora, os movimentos e as lutas dos homossexuais pelo reconhecimentos e pela não discriminação foram desde sempre habitados por este dilema: conduzir uma política baseada num discurso fortemente identitário, com pressupostos comunitários, ou, pelo contrário, visar uma comunidade sem pressupostos e rejeitar toda a política da identidade? Reivindicar a diferença ou a indiferença? Rejeitar conceitos classificatórios e tornar-se irrepresentável, ao ponto de dizer que não existe um sujeito homossexual, mas apenas produções homossexuais de desejo, ou insistir no direito à representação? Em suma: ser reconhecido no quadro de uma biopolítica e do biopoder ou tornar-se inapropriável e, por conseguinte, potencialmente inimigo do Estado? É certo que estas antinomias, formuladas desta maneira, fazem parte de um passado em que emergiu uma concepção heróica e altamente politizada da homossexualidade e da sexualidade em geral. A situação, hoje, é outra. E o discurso também. Mas sempre que alguém fala com toda a ligeireza de uma “comunidade homossexual” apetece acordar tais antinomias do seu sono profundo.