Que reforma democrática do Ensino Superior?
Nos últimos anos vivemos tempos de grande fragilidade nas instituições. É pois tempo de virar a página com tenacidade e voltar a trazer o debate democrático para o centro da vida educativa.
A 10 de Setembro de 2017 assinalam-se dez anos da entrada em vigor do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES). Este regime constituiu a maior transformação estrutural da governação democrática das instituições de ensino superior desde 1988. Ao caminharmos para uma década da entrada em vigor da lei, não será momento de se iniciar um balanço da sua aplicação e das suas consequências no ensino superior português?
A publicação do RJIES, em 2007, veio substituir a chamada Lei da Autonomia Universitária (Lei n.º 108/88). Entre outras razões, esta lei foi fundamental porque garantiu um modelo de gestão democrática, assente em quatro órgãos: uma Assembleia da Universidade ampla, composta por docentes, estudantes e funcionários, que aprovava os estatutos e elegia o reitor; o Reitor, eleito por escrutínio secreto, e que propunha as linhas gerais da universidade; o Senado Universitário, constituído por representantes de docentes e estudantes, respeitando o princípio da paridade, e também por funcionários, competindo-lhe aprovar as grandes linhas de orientação e atividades, exercer poder disciplinar ou fixar a propina; e, finalmente, o conselho administrativo, um órgão colegial de gestão administrativa, patrimonial e financeira, fazendo parte dele o reitor, um vice-reitor, o administrador e um representante de estudantes.
O RJIES deu a volta a este modelo de gestão democrática. Entre várias alterações, procedeu a uma centralização de competências num novo órgão: o Conselho Geral. Em relação aos órgãos anteriores, o Conselho Geral viu reduzida a dimensão dos seus membros, diminuiu a representação de estudantes, introduziu uma grande percentagem de membros externos e acabou com a paridade entre alunos e professores. Paralelamente foi introduzido um novo método de eleição do reitor, que em vez de ser eleito por sufrágio direto pela Assembleia de Universidade, passou a ser eleito pelo Conselho Geral, órgão de menor dimensão e no qual os membros externos à universidade têm uma representação muito superior aos estudantes e aos funcionários não-docentes.
Quer pela participação na vida das instituições, quer pela investigação já realizada, é fácil constatar que o RJIES introduziu fortes lacunas. Entre elas destacam-se a mitigação da democraticidade na eleição do reitor; a redução e a verticalização dos órgãos de gestão; a perda de representatividade dos corpos internos; a diminuição da colegialidade na tomada das decisões; a instrumentalização de muitas eleições de conselhos gerais, que se transformaram em eleições indiretas de reitores; e a centralização das lideranças internas. Em suma, onde nas instituições havia um potencial de participação democrática intensa, em muitos casos existe hoje um modelo de governação assente numa democracia cerimonial e de simulacro.
Importa, então, que nos dez anos do RJIES se lance um amplo debate sobre que reforma democrática poderá voltar a envolver a comunidade educativa num modelo de gestão participado e representativo das instituições. Na minha perspetiva, existem um conjunto de mudanças absolutamente prioritárias.
A primeira delas é o reforço da democraticidade da eleição do reitor ou presidente. Para tal, seria necessário que a sua eleição deixasse de competir ao Conselho Geral, constituindo-se para o efeito uma grande assembleia eleitoral, onde estejam representados estudantes, docentes e funcionários não-docentes eleitos diretamente. Desta forma, garantia-se a independência do Conselho Geral no seu papel fiscalizador e envolvia-se amplamente a comunidade educativa numa escolha tão importante.
No que respeita à representação nos órgãos de gestão é urgente reforçar a participação de estudantes e funcionários não-docentes, garantido que nenhum destes corpos se encontre subrepresentado face ao conjunto de membros externos. Neste momento, os/as estudantes apenas têm direito a 15% dos membros do Conselho Geral e os/as funcionários não-docentes não têm sequer uma presença obrigatória no órgão. Aumentar substancialmente a presença de estudantes e garantir a presença de funcionários parecem-me reformas do mais elementar bom senso.
Creio, ainda, que se devia recuperar o princípio da igualdade entre professores e alunos que vigorou até 2007 e que se traduzia numa representação paritária nos órgãos. Esse princípio constituía um elemento original e inovador, que implicava a co-responsabilização da grande maioria da comunidade educativa com os destinos das suas instituições.
A obrigatoriedade da existência de um Senado Universitário, como já existem em várias instituições, seria mais uma forma de garantir uma participação ampla na instituição. Permitiria envolver na vida da instituição representantes de unidades orgânicas, estudantes, docentes e funcionários, funcionando como um órgão que deve ser de consulta obrigatória pelo reitor e pelo Conselho Geral nas matérias mais relevantes da instituição.
Paralelamente, torna-se cada vez mais necessário reforçar a independência do Conselho Geral. Para tal, a presença neste órgão deve ser incompatível com o exercício de funções de presidência ou direção de unidades orgânicas. Não é plausível ter um órgão fiscalizador no qual pode estar representado quem é fiscalizado.
Uma outra necessidade prende-se com a garantia de apoio técnico, administrativo e jurídico aos membros dos órgãos. Num tempo em que a gestão se tecnocratizou, circunscrevendo o campo da representação a “especialistas”, a introdução destes apoios assegura que todos, sem exceção, têm condições de participar em todos os debates.
Finalmente, precisamos dramaticamente de uma reforma que garanta igualdade de género nos órgãos das instituições. Um estudo recente sobre o papel dos Conselhos Gerais, dirigido por António Oliveira, Paulo Peixoto e Sílvia Silva, chegou à preocupante conclusão de que há uma clara dominação masculina destes órgãos de gestão. Nos representantes de estudantes os homens representam 82% dos membros; entre os professores são 70,4%; e nos membros externos 83%. Ou seja, em média, nos conselhos gerais das universidades 75,4% dos conselheiros são homens. Quebrar este traço sexista na gestão das instituições podia passar por garantir a obrigação de que todas as listas candidatas respeitam o critério da paridade de género, tendo de garantir a representação mínima de 33% de cada um dos sexos.
Estas reformas procuram dirigir-se ao problema da gestão democrática das instituições, mas estão longe de esgotar um conjunto de outras mudanças que é preciso discutir. Desde logo o movimento de transformação das universidades públicas em fundações de direito privado. Num contexto de subfinanciamento crónico, o chamado “regime fundacional” faz o contrário do reforço da autonomia: mercantiliza as universidades e coloca-as mais dependentes de poderes externos. Está mais que na altura de reabrir esse debate.
Dizia George Steiner, na sua passagem em 2009 por Lisboa, que “desde a sua instauração em Bolonha, Salerno ou Paris medieval, as universidades são bichos frágeis mas tenazes”. Nos últimos anos vivemos tempos de grande fragilidade nas instituições. É pois tempo de virar a página com tenacidade e voltar a trazer o debate democrático para o centro da vida educativa. A democracia é mesmo a principal condição de futuro do nosso ensino superior.
Sociólogo, antigo membro do Conselho Geral do ISCTE-IUL e autor da tese O campo universitário português: transformações e disputas entre 1988-2015
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico