O fim da Cornucópia, uma catástrofe no teatro português
Esta companhia era, como muitas vezes se disse, o verdadeiro Teatro Nacional.
O anunciado encerramento do Teatro da Cornucópia é, do ponto de vista artístico, um acontecimento negativo de proporções gigantescas, sendo as causas de tal facto um escândalo que envergonha o país e quem o governa. O poder, qualquer que ele seja, inscreve sempre, como tem sido dito e repetido, a cultura no final da lista das suas prioridades.
A razão é simples: eles não precisam disso para nada (haverá, é claro, as honrosas excepções). Alguém vê políticos num concerto, por exemplo? Sim, realmente costumava ver Marcelo Rebelo de Sousa em excelentes concertos da Gulbenkian… Por isso, não me surpreendeu a sua visita, de explícito apoio, ao Teatro da Cornucópia. E não digo isto por quaisquer afinidades de natureza política: sempre estive, e estou, do outro lado da barricada. Mas entendo que o seu gesto merece uma saudação.
Chamemos as coisas pelos seus nomes: a Cornucópia tem sido, ao longo do já tão repetido número de 43 anos, o grande esteio de uma prática teatral ao mais alto nível, a companhia que dava ao espectador a absoluta garantia de que iria estar perante uma linguagem teatral capaz de o surpreender, pela ousadia das propostas, pela escrupulosa escolha dos textos, pela capacidade de colocar a imaginação, a inovação e o rigor em primeiro lugar nas suas produções. E aqui, ao lado da ímpar personalidade de encenador de Luis Miguel Cintra, há que destacar o estruturante e fundamental trabalho da cenógrafa Cristina Reis, numa contribuição decisiva para a imagem da Cornucópia, quer no plano visual, quer na concepção global dos espectáculos.
Ir assistir a um espectáculo da Cornucópia, como sobejamente o voltou a comprovar o sublime “recital” (mas foi autêntico teatro o que, mais uma vez, aconteceu) com textos de Apollinaire, apresentado no passado sábado, dia 17, era sempre alguma coisa que nos redimia das misérias artísticas predominantes num meio teatral pobre (algumas excepções pontuais a esta regra não podiam, de forma alguma, competir com o papel regular, superior e consistente desempenhado pela Cornucópia), onde o próprio Teatro Nacional (falo, nomeadamente, do D. Maria, que tenho acompanhado com maior atenção) nunca cumpriu a função, que deveria ser a sua, de apresentar, com regularidade, aos seus frequentadores as propostas estimulantes, simultaneamente sólidas e surpreendentes, que deveriam estar na base do seu trabalho.
Não, quem preenchia esse lugar era a Cornucópia: esta companhia era, como muitas vezes se disse, o verdadeiro Teatro Nacional.
Assim sendo, por que se indignam tanto alguns seres que (dizem-me, porque não sou frequentador desses lugares de intriga e de má língua) pululam nas eufemisticamente chamadas “redes sociais” contra a hipótese de se assegurar à companhia de Luis Miguel Cintra uma situação (uso esta palavra para evitar a treta do “estatuto especial”) que o libertasse dos meandros “burocráticos”, para recorrer ao expressivo termo de Herberto Hélder, permitindo-lhe pôr em prática o seu génio (sim génio) de encenador, sem ter de perder-se na decifração dos áridos formulários da Direcção Geral das Artes (sei bem o que isso é, já que, numa fase em que estive ligado a um grupo teatral, tive a minha entediante dose de quadradinhos para preencher). Não foi garantida, em tempos, a Manoel de Oliveira uma situação semelhante? Achei lamentável, meu caro Luís Filipe, que viesses invocar a tua qualidade de jurista, quando bem melhor teria sido invocares a de poeta…
Acompanhei, desde o início, na década de 60, no Grupo de Teatro da Faculdade de Letras, a carreira de Luis Miguel Cintra, que fez então parte do Grupo de Poesia, naquele integrado, que eu organizara. Vi o primeiro espectáculo que encenou, ainda antes da fundação da Cornucópia, “Anfitrião” de António José da Silva, já um prodígio de inovação, e um sucesso retumbante, conseguido com o austero orçamento de sete contos e quinhentos.
De António José da Silva a Apollinaire vai um percurso de que este país parece não querer mostrar-se digno. Interromper o trabalho da Cornucópia é como ter impedido Fernando Pessoa de escrever os seus poemas (e, na verdade, só lhe deram um segundo prémio pela “Mensagem”; por outro lado, aos poetas não é necessário subsídio para papel e lápis), Manoel de Oliveira de fazer os seus filmes, Fernando Lopes Graça de compor a sua música (e também em relação a ele, o maior compositor português de todos os tempos, Portugal se tem mostrado bem ingrato).
Ó medíocres que, segundo me dizem, no Facebook se agitam, paz aos vossos (pobres) espíritos!