Direito à habitação ou urbicídio?
“Demolir casas sem que as pessoas tenham sítio para ir é uma violação do direito à habitação condigna” - disse Leilani Farha, relatora especial da ONU, que esteve recentemente em Portugal para avaliar o estado do acesso à habitação das populações mais vulneráveis.
Tive ocasião de falar com Leilani Farha e de lhe expor o que todos sabemos: muito se fez em Portugal nesta área, mas neste momento não temos nenhum programa nacional de habitação que possa fazer face às necessidades de realojamento em Portugal.
O último grande programa que existiu foi o Programa Especial de Realojamento (PER), lançado em 1993 pelo governo de Cavaco Silva, mas que só arrancou após uma forte pressão do então Presidente da República, Mário Soares, que fez uma Presidência aberta na área metropolitana de Lisboa expressamente para revelar e pôr na agenda as graves carências habitacionais na capital e sua periferia. O programa teve um enorme impacto e permitiu erradicar a maioria dos bairros de barracas ou habitações precárias. Mas tinha uma pecha – só eram considerados os agregados recenseados em 1993, quem chegasse depois ficava de fora.
As Nações Unidas aprovaram este ano na Conferência Habitat III, realizada em Quito, uma importante e avançada Nova Agenda Urbana, em que se defendem cidades inclusivas, solidárias, participadas e sustentáveis. Um dos grandes princípios norteadores da Nova Agenda Urbana mundial é simples: “Não deixar ninguém para trás”.
Numa altura em que Portugal se orgulha de ter António Guterres à frente da ONU, é inconcebível que se continuem a verificar actos como as demolições em curso no Bairro 6 de Maio, na Amadora. O processo é feito de modo particularmente desumano: as pessoas são notificadas apenas oralmente, sem saberem em que dia chega o camartelo. As alternativas propostas passam por um alojamento provisório de alguns dias em albergues temporários para pessoas sem abrigo. As casas demolidas ficam no meio das que permanecem, num cenário que é semelhante a um cenário de guerra, com crianças a brincar entre os escombros. O município argumenta com a lei que criou o PER dizendo que se trata de pessoas “não PER” e que por isso não têm direito à habitação. O governo anuncia que está a pensar criar um novo programa de realojamento. Mas o Orçamento de Estado de 2017 não tem verba para o efeito.
Temos uma Constituição em que o direito à habitação é salvaguardado, aliás de forma bastante clara e avançada. Nunca fomos porém capazes de construir a lei de bases da habitação, sem a qual o artigo 65º da CRP não passa de uma meta moral. Todos os outros direitos sociais têm leis de bases que enquadram as políticas dos sucessivos governos – na saúde, na educação, na segurança social.
A habitação saiu da agenda política há muitos anos, como se o direito à habitação, nas suas múltiplas vertentes, estivesse garantido a todos os cidadãos residentes no nosso país. Não está. Os últimos a chegar – jovens, emigrantes, refugiados – estão a ficar para trás. As comunidades mais pobres, particularmente as de origem africana, estão a ficar para trás. Os idosos a quem foram violentamente aumentadas as rendas estão a ficar para trás. Os municípios urbanos não têm mãos a medir para dar resposta às listas de espera de habitação municipal. Há pessoas na rua, outras a viver em carros ou por favor em casas emprestadas. Há novamente famílias em sobrelotação, com avós, pais e netos a disputarem o seu espaço vital. Há milhares de habitações devolutas, nas mãos da banca, de fundos imobiliárias ou mesmo de propriedade pública, que pelas razões mais diversas não são colocadas no mercado. E não há, não houve até à data, nenhuma prioridade política para estas temáticas.
Temos de legislar, procurar financiamentos, definir responsabilidades do Estado e dos municípios, cruzar a política de habitação com a política social, a política fiscal e a política de solos. Temos de lançar um novo regime de habitação com renda acessível. Tudo isto é urgente mas não se faz num dia. O que se pode fazer desde já – e daí o meu apelo público – é parar com o urbicídio em curso nos bairros informais das populações pobres. “Vemos, ouvimos e lemos”, como escreveu Sophia, “não podemos ignorar”.