Há quinze anos, do pântano ao país de tanga

Hecatombe eleitoral autárquica do PS que motivou a demissão de António Guterres foi na noite de 16 de Dezembro de 2001. Que “pântano” era este que ainda hoje o termo se lhe cola à pele?

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Em 2001, Guterres, então primeiro-ministro de um Governo sem maioria absoluta, demitiu-se na sequência de uma derrota do PS nas eleições autárquicas Daniel Rocha

Há quinze anos, o agora secretário-geral da ONU fechava a noite eleitoral autárquica a anunciar, de forma inesperada, quase à uma da manhã, em directo na televisão, que iria pedir ao Presidente da República a sua demissão do cargo de primeiro-ministro, depois de conhecida a hecatombe dos socialistas nas urnas. António Guterres justificou a sua saída com a necessidade de evitar que o país mergulhasse no “pântano”.

Recuando no tempo, a ministra da Saúde e da Igualdade dos executivos de Guterres, Maria de Belém, justifica tal decisão com a “incapacidade” do Governo de Guterres de aplicar políticas estratégicas de longo prazo, devido à geometria partidária pulverizada do Parlamento. O mesmo argumento é usado por um ministro do executivo de Durão Barroso, que se lhe seguiu: “Saímos de um país do pântano para o reconhecimento de um país de tanga”, lembra José Luís Arnaut.

Tal como a sua imagem titubeante, à porta dos Hospitais da Universidade de Coimbra, a tentar calcular 6% do PIB nacional, o termo “pântano” colou-se à pele de Guterres e talvez não tenha sido bem percebido pela opinião pública. Já a oposição aproveitou o termo para o acusar de “incapacidade de governar”, lembram Maria de Belém Roseira e Alberto Arons de Carvalho, secretário de Estado da Comunicação Social dos dois governos de Guterres.

Até certo ponto era, de facto, incapacidade – não por ignorância mas por falta de condições para governar. Com exactamente metade do Parlamento, 115 deputados, o PS conseguiu rechaçar três moções de censura, mas precisou da mão do CDS para aprovar o orçamento de 2000 e da do deputado Daniel Campelo (contra o resto do CDS) para o do ano seguinte. E não conseguia fazer passar políticas estratégicas, recorda Roseira. “Há mínimos denominadores comuns que é possível encontrar em muitas matérias e temos que estar unidos em questões de regime. Mas em muitos casos a política partidária parece que tem a cultura do futebol”, diz a ex-ministra, que acrescenta que a oposição “infernizou a vida” do Governo de Guterres. Lembra a ridicularização da “paixão pela educação”, quando foi lançada a rede do pré-escolar que hoje a direita considera essencial.

Arons de Carvalho admite que as autárquicas foram o “espelho” da crise política parlamentar e que Guterres preferiu “clarificar” a questão do poder para evitar continuar com um país “paralisado e enfraquecido”. Até porque, considera, se Guterres prolongasse a tomada de decisão, o PS ficaria “ainda mais fragilizado quando tivesse que ir às eleições”.  

As legislativas antecipadas de Março de 2002 deram a vitória ao PSD de Durão Barroso que formou um Governo de coligação com o CDS. Nesse executivo, José Luís Arnaut foi ministro-adjunto do primeiro-ministro, depois de ter sido o coordenador autárquico do PSD nas eleições de 2001. O antigo governante recorda que “havia uma grande instabilidade do Governo socialista”, já que nem o PSD nem o PCP eram parceiros do executivo. “O PS começava a estar cansado”, diz.

Apontando o “pântano” como um previsível “impasse político”, José Luís Arnaut considera que o então primeiro-ministro “teve lucidez e interpretou as eleições como os portugueses interpretaram”, mostrando que “não estava apegado ao poder”. O antigo secretário-geral do PSD lembra que a situação económica “estava complicada” por não terem sido feitas as reformas necessárias como aconteceu em Espanha, por exemplo. Daí que o discurso do pântano se tivesse transformado num outro celebrizado por Durão Barroso: “Saímos de um país do pântano para o reconhecimento de um 'país de tanga'.”

Outro ministro desse Governo de Durão Barroso, Luís Marques Mendes, também atribui a demissão de Guterres à falta de condições de governabilidade. Mas lembra que as leituras nacionais de eleições autárquicas não devem ser a regra. Para o antigo ministro dos Assuntos Parlamentares, o “pântano” existia desde que Guterres tinha sido reeleito em 1999 sem maioria parlamentar: “Não há situação mais pantanosa do que o Orçamento do Queijo Limiano”.

O cansaço e o desgaste de um executivo minoritário são também os motivos apontados por outro membro do então Governo PSD/CDS para justificar a atitude de Guterres. “O eng. António Guterres tinha perdido a mão no Governo e no partido”, afirma Nuno Magalhães, na altura secretário de Estado da Administração Interna, indicado pelo CDS. O actual líder da bancada centrista considera que o então primeiro-ministro fez uma “boa leitura” dos resultados eleitorais. Essa derrota foi compreendida por Guterres “como pessoa inteligente que é” e foi “o pretexto de que precisava”, observa Nuno Magalhães.

Esta é também a leitura do politólogo António Costa Pinto, que diz que foi uma maneira airosa de Guterres preservar algum capital para o seu futuro político – ainda que tenha acabado por preferir, até agora, uma carreira exclusivamente internacional. O “pântano” a que se referia Guterres era a soma da sua falta de capacidade de manobra parlamentar com a crise internacional que se adivinhava à porta e que exigia, disse então, “uma resposta denodada”. E o então primeiro-ministro, com Almeida Santos, Ferro Rodrigues e António Vitorino, foi explícito naquela noite: se ele passasse pelas eleições como se nada fosse, “o país cairia inevitavelmente num pântano político que minaria as relações de confiança entre governantes e governados que são indispensáveis para que Portugal possa vencer os desafios que tem pela frente”.

Costa Pinto diz que o pântano foi o “grande exemplo da extrema dificuldade do PS de formar governos maioritários à esquerda” e lembra que Guterres “encerrou o ciclo virtuoso da adesão à CEE e subsequente desenvolvimento económico e mudança social e abriu o ciclo da estagnação”, ou seja, o tal pântano que dizia querer evitar. Se evitou o pântano político, acabou por não evitar o económico. 

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