Jornalismo em crise: salários baixos, precarização e abandono da profissão
Inquérito a 806 jornalistas de todo o país mostra que grande parte ganha menos de 1000 euros mensais. Quase um quarto diz sofrer pressões das administrações e direcções no decorrer do trabalho.
Os jornalistas têm salários baixos, muitos têm vínculos precários e abandonam a profissão cedo. Estas são algumas das conclusões de um inquérito a jornalistas portugueses feito por João Miranda, investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra, no âmbito de uma tese de doutoramento. O estudo, desenvolvido em 2015, contou com respostas de 806 profissionais de todo o país. Existem em Portugal mais de sete mil repórteres, segundo o Sindicato dos Jornalistas.
Os resultados do inquérito que vão ser apresentados esta quinta-feira, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), mostram que mais de metade dos jornalistas recebe menos de 1000 euros por mês. Aliás, 56,3% dizem auferir 1000 euros ou menos brutos por mês, ou seja, valores líquidos ainda mais baixos que não incluem impostos nem descontos. “Estamos a falar de vencimentos bastante baixos, na sua generalidade”, refere João Miranda, que é também professor na FLUC e doutorando com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). O investigador diz que estes indicadores são “preocupantes”.
No escalão dos que recebem menos 1000 euros, o grupo mais significativo é o dos que recebem entre 601 e 900 euros, com 22,1% dos inquiridos a declararem essa quantia. Há ainda “uma percentagem relevante (7,3%) que refere receber abaixo do que era o salário mínimo quando foi desenvolvido o inquérito”. Com melhores remunerações, há 19,1% que declaram receber entre 1001 e 1500 euros e 24,6% que indicam mais de 1500 euros brutos como rendimento mensal. Quanto ao vínculo laboral, apenas metade tem um contrato sem termo, uma situação que o investigador classifica como “igualmente preocupante”. “Todos os outros encontram-se contratados em lógicas próximas da precariedade, ou seja, com vínculos que não garantem estabilidade”, afirma.
O estudo revela ainda que 19,8% dos inquiridos se encontram em regime de prestação de serviços (“recibos verdes”) e 5,2% trabalham também naquele regime mas com avença, auferindo um montante mensal fixo. O investigador sublinha que um cruzamento de dados permite concluir que dos 19,8% que trabalham em prestação de serviços 34,5% recebem um valor fixo, apesar de não terem qualquer contrato de avença, e 63,5% dependem do número de peças ou caracteres que produzem.
E a ética?
Os dados sobre o vencimento e vínculo contratual dos jornalistas em Portugal ganham relevância quando 54,9% dos inquiridos entendem que a sua situação laboral afecta o desempenho do seu trabalho e 28,9% consideram que esta afecta o cumprimento dos preceitos éticos e deontológicos no desempenho da profissão. “Estamos a falar de um quarto da profissão a concordar com essa ideia. Não deixa de ser preocupante”, comenta.
Outro cruzamento de indicadores permite observar que a ideia de que a situação laboral afecta o desempenho no trabalho obtém “concordância sobretudo entre os prestadores de serviços”, explica João Miranda.
A dificuldade em encontrar facilmente um novo emprego como jornalista também reúne consenso, com 77,3% dos inquiridos a concordarem ou a concordarem totalmente com esta ideia. A maior parte dos jornalistas está há 24 ou menos anos na profissão. A partir dos 25 anos o número de profissionais desce. O docente diz que “esta é uma profissão muito jovem, que é abandonada relativamente cedo, o que pode ser explicado por alguma precarização da própria profissão”.
Quase um quarto dos jornalistas que responderam ao inquérito entende que é alvo de pressões da administração empresarial no decorrer do seu trabalho. São 23,8% a “concordarem” ou a “concordarem totalmente” com esta ideia. Os resultados não são muito diferentes quando a origem das pressões provém da direcção editorial e a percentagem sobe para 26,2%. No que toca a pressões externas, a percentagem é ainda mais expressiva, chegando aos 35,7%. No entanto, o inquérito não especifica o tipo de pressões, nem das internas, nem das externas. Para tentar compreender melhor os resultados, João Miranda cruzou os dados com o tipo de vínculo, género e idade, mas refere que esta é uma questão “transversal”.
Alteração dos trabalhos dos jornalistas
Mas a alteração dos trabalhos sem o consentimento dos jornalistas é um fenómeno “sem grande expressão”, observa o investigador do CEIS20, com a situação a registar-se “sempre” em 1,8% das respostas, “muitas vezes” em 3,1% e “frequentemente” em 4,4%. As alterações não autorizadas do conteúdo noticioso são efectuadas em grande parte pelos editores (59,6%) ou pela direcção (33%).
O docente da FLUC considera que os resultados contrariam uma ideia de “burocratização generalizada no trabalho jornalístico”, com recurso a notas de agência e pouco contacto com fontes, embora se possa “encontrar algumas tendências nesse sentido”. Segundo a investigação, 59,4% dos jornalistas contactam pessoalmente com as fontes na produção de peças “sempre” ou “muitas vezes” e apenas 13,4% referem que o fazem “nunca” ou “raramente”. A utilização de notas de agência como única fonte de notícias não é uma prática dominante.
Também quase um quarto (24,2%) assume que nunca ou raramente sai da redacção para tratar matérias. Já 12,4% dizem fazê-lo “sempre”, 28,8% fazem-no “muitas vezes” e 34,6% afirmam sair da redacção em trabalho “frequentemente”.