Em Alepo, “os vivos contam os dias até à morte”

Obama tem pouco mais de um mês para fazer alguma coisa pelos sírios. Ban Ki-moon tem ainda menos tempo. EUA e Rússia negoceiam um cessar-fogo. Cinco capitais condenam Damasco e Moscovo.

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Civis chegam a uma zona controlada pelo regime Reuters

A Síria está a morrer há anos e ninguém consegue ou quer fazer nada. O conflito que começou com uma revolta pró-democracia esmagada brutalmente por um ditador passou por fases sempre mais complexas e não pára de piorar. Estados Unidos e Rússia discutiram esta noite uma proposta de cessação de combates e evacuação dos civis feridos encurralados em Alepo e não chegaram a lado nenhum.

A maior das cidades sírias e a sua capital comercial até 2011 estava desde Agosto de 2012 partida em dois – de um lado, oposição; do outro o regime. Nas últimas semanas, os ataques das forças de Bashar al-Assad, apoiadas pela Rússia, tornaram-se tão intensos que os rebeldes já quase perderam todo o território que controlavam. Esta quarta-feira pediram um cessar-fogo de cinco dias e a retirada de pelo menos 500 feridos a necessitar de tratamento urgente. Fizeram o que lhes restava, cederam para tentar salvar algumas vidas.

Os líderes de cinco países – Estados Unidos, França, Reino Unido, Canadá e Itália – lançaram em seguida um apelo ao fim imediato dos bombardeamentos na cidade do Norte da Síria perante a “catástrofe humanitária”, dizendo ao mesmo tempo à Rússia e ao Irão (os principais aliados de Damasco) para “usarem a sua influência” sobre o regime para o obrigar a isso.

“Condenamos as acções do regime sírio e dos seus partidários estrangeiros, em particular a Rússia, pela obstrução à ajuda humanitária, e condenamos firmemente os ataques do regime que devastaram as instalações civis e médicas, assim como a utilização de barris explosivos [bombas-barril] e de armas químicas”, lê-se no texto assinado por Barack Obama, François Hollande, Theresa May, Justin Trudeau e Matteo Renzi. A declaração comum sublinha “a urgência absoluta de um cessar-fogo imediato para permitir às Nações Unidas distribuir ajuda às populações do Leste [onde se concentrava a oposição e todos os que recusam passar para zonas controladas pelo Governo] e de levar socorro aos que fogem”.

Palavras duras e contundentes? Pouco e tarde? Depende do ponto de vista. Alepo era uma tragédia a acontecer diante de todos. Médicos e socorristas, opositores e sírios comuns, ONG sírias e estrangeiras avisaram para o que estava a passar-se, disseram quanta comida sobrava, que medicamentos e material médico faltavam para ajudar os feridos que crescem a cada dia que passa.

Há umas semanas, havia 250 a 300 mil pessoas sob cerco de Assad. Entretanto, centenas morreram (a juntar aos mais de 400 mil mortos desde 2011) e milhares fugiram.

O fim da guerra

Sábado, o enviado internacional para a Síria, Staffan de Mistura, dizia que havia ainda mais de 100 mil pessoas nas zonas controladas pela oposição e sob fogo constante. O Observatório Sírio para os Direitos Humanos, ONG ligada à oposição e cujos dados se confirmam na maioria das situações, diz que podiam ser 200 mil. Muitos caminhavam esta quarta-feira entre os destroços da Cidade Velha, uma das zonas há mais tempo habitadas do mundo e considerada património universal pela UNESCO. Agora, quase toda esta área, densamente habitada, caiu para o regime.

Uma vitória em Alepo representará uma “etapa enorme” no caminho para o fim da guerra, afirmava entretanto Assad, numa entrevista ao jornal sírio Al-Watan que será publicada na quinta-feira. Sim, é verdade. Os sírios que ousaram sair à rua há quase seis anos para pedir o fim da impunidade da elite no poder, mais justiça social e maiores liberdades, estão quase de joelhos. Sobra pouco para continuar a resistir. Sobra Idlib, cidade do Nordeste onde a revolta pegou pela primeira vez em armas, para onde alguns dos que fugiram de zonas perdidas pela oposição se dirigiram, é agora “demasiado perigosa”, devido às bombas que ali caem com frequência.

Uma das últimas ONG que operava em Alepo, a Syria Relief, descreveu o desespero de quem permanece no Leste da cidade. “As pessoas temem que Grozni [capital da Tchetchénia arrasada pelos russos nas guerras dos anos 1990] esteja a acontecer outra vez”, diz o presidente da ONG, o médico Mounir Hakimi. “As pessoas perderam a confiança em toda a gente – nos líderes mundiais, nas organizações internacionais que as vêem ser mortas. Perderam a fé nas Nações Unidas. E limitam-se a contar os dias até à sua morte”.

Desculpas e vergonha

Há quase um ano, o agora de saída secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, descreveu a Síria como “um símbolo vergonhoso” das divisões e dos fracassos das lideranças dos países que a sua organização reúne. Antes de Mistura, Ban convidou Kofi Annan e Lakhdar Brahimi para este lugar; ambos abandonaram o cargo sem nada para mostrar. O diplomata argelino saiu em 2014 pedindo desculpas aos sírios por não conseguir fazer mais por eles. Mais recentemente, foi o chefe da organização para a ajuda humanitária, Stephen O’Brien, a falar de Alepo como “a vergonha da nossa geração”.

Em Hamburgo, o secretário de Estado americano, John Kerry, e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, estivem juntos já à noite a discutir o plano de Mistura (que a oposição aceita) para pôr fim aos confrontos em Alepo e ajudar quem precisa. “Trocámos algumas ideias. Temos a intenção de retomar o contacto [quinta-feira] de manhã para ver onde estamos”, afirmou Kerry aos jornalistas na Alemanha, onde se encontra para a reunião anual da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa).

Na véspera, em Bruxelas, o chefe da diplomacia de Obama disse que Moscovo fez saber que Assad está “disposto a sentar-se à mesa das negociações”, uma proposta “irrecusável” quando não se tem outra ideia ou solução. Faz sentido. Assad está sempre pronto a negociar quando está a vencer. Só que quando os seus enviados se sentam à mesa gozam com as regras que disseram aceitar antes de ali chegarem, recusando, por exemplo, discutir um executivo de transição.

Obama tem pouco mais de um mês para fazer alguma coisa pelos sírios. Ban Ki-moon tem ainda menos tempo, será em breve substituído por António Guterres. Os sírios – cinco milhões já fugiram do país; sete milhões estão deslocados dentro da Síria – vão continuar a morrer todos os dias.

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