Morreu a "mãe" do Tamil Nadu
Antiga actriz de cinema, Jayalalithaa Jayaraman chefiava o estado indiano com mão férrea.
No Mahabarata, um dos épicos clássicos da Índia antiga, a mítica Draupadi é descrita como uma mulher com vontade de ferro, disposta a reduzir os seus inimigos a cinzas e a defender os mais fracos. Uma mulher que dizia o que pensava, num mundo onde eram sempre os homens a decidir. Jayalalithaa Jayaraman ocupa também esse imaginário, não só no Tamil Nadu, o estado que governou durante anos com um estatuto de deusa, como no resto da Índia.
Há 40 dias – desde que Jayalalithaa foi internada no hospital Apollo, em Chennai (a capital do estado, no Sul da Índia) com febre, desidratação e infecção respiratória – que há vigílias, orações, manifestações, actos de auto-flagelação. No domingo, sofreu um ataque cardíaco e não conseguiu recuperar. Mais de seis mil agentes de segurança foram enviados para a cidade para manter a ordem e impedir que extremadas manifestações de dor se transformem em distúrbios.
Dezenas de milhares de pessoas participaram esta terça-feira no seu funeral, incluindo primeiro-ministro, Narendra Modi, e o Presidente Pranab Mukherjee. Ao contrário do que é tradição entre a sua casta brâmane, não foi cremada mas sepultada. A sua campa ficou ao lado da de MG Ramachandran, o actor que virou político e que a ajudou a fazer o mesmo, em 1982.
Jayalalithaa era a “menina de ouro” da indústria cinematográfica do Tamil Nadu e participou em mais de 140 filmes. Em muitos deles era a personagem principal, a heroína, quando o costume era esse papel caber a um homem.
Depois de 20 anos a aparecer nos grandes ecrãs, seguiu para a política com um discurso feminista bem treinado. A morte de Ramachandran em 1987 abriu uma cisão no partido, o AIADMK. Não foi sem luta que Jayalalithaa conseguiu tomar as rédeas e tornar-se a primeira mulher a liderar a oposição na assembleia estatal – onde uma vez chegou a ser fisicamente atacada por um membro de um partido rival.
Em 1991, estava já a chefiar o governo do Tamil Nadu. “A actriz que introduziu as saias, fatos de banho e glamour no cinema tâmil aparecia agora sem maquilhagem, completamente coberta por um sari e pronta a assumir o papel de Amma [mãe]”, escreve o site Quartz India. “A ligação ao cinema ira ajudá-la e persegui-la”. Seria pretexto para os opositores a subvalorizarem politicamente, mas a sua imagem não parava de aparecer no seu canal televisivo, que durante as campanhas eleitorais não se cansava de exibir os filmes que protagonizou, continua a mesma publicação.
Jayalalithaa seria eleita por quatro vezes, intercalando com o Dravida Munnetra Kazhagam (DMK), o partido liderado por Muthuvel Karunanidhi (também ligado ao cinema, como argumentista). “A competição com Karunanidhi, o seu arqui-rival, tem assumido contornos épicos, vista pelos seus respectivos [apoiantes] como uma luta cósmica entre dois deuses”, comenta ao PÚBLICO Constantino Xavier, investigador do instituto Carnegie India em Nova Deli. “Cinema, política e religião são os três factores tradicionais que se confundem no Tamil Nadu”.
A sua biógrafa, a romancista Vaasanthi Sundaram, comentou ao Guardian que Jayalalithaa “era a política mais colorida, dinâmica e determinada que alguma vez se viu”, e que “desafiou sem tréguas a política sexista dominada por homens do Tamil Nadu, que tentou sem descanso detê-la ao longo de todo o caminho”.
Cantinas e quotas
Se muitos no seu estado lhe chamavam Amma e se sentem agora órfãos é por ter introduzido medidas direccionadas aos mais pobres, como as cantinas Amma, com refeições acessíveis, check ups médicos grátis para mulheres, computadores portáteis de borla para os estudantes, bicicletas para raparigas que frequentam a escola, electrodomésticos para donas de casa… Criou centros para acolher bebés do sexo feminino e programas de adopção de raparigas, reduzindo o infanticídio, impôs quotas para mulheres na polícia. E outros programas mais exuberantes como a distribuição de joias de casamento para os pobres.
“Jayalalithaa construiu ao longo de quase três décadas um império regional baseado em autoritarismo e populismo”, continua Constantino Xavier. “Desde os anos 1990 soube também aliar-se com diferentes partidos no governo central. Embora seja da casta brâmane e mulher, dois aspectos tabu na política ultra-conservadora do Tamil Nadu, conseguiu instrumentalizar a religião hindu para agregar apoios.”
Por outro lado, foi importante para fazer do Tamil Nadu um dos estados com mais peso económico do país. “As altas taxas de crescimento económico no Tamil Nadu devem-se principalmente às políticas de Jayalalithaa favoráveis ao investimento estrangeiro, especialmente na indústria e nos serviços”, acrescenta o investigador português. A sucessão, que passa agora para O. Panneerselvam, seu ministro das Finanças e Obras Públicas, poderá ser interrompida pelas tentativas dos principais partidos do país em aproveitar a partida da carismática líder: "O Congresso da dinastia Nehru-Gandhi e os nacionalistas do BJP liderados pelo actual primeiro-ministro Modi vão procurar preencher o vácuo deixado por Jayalalithaa e forçar eleições antecipadas, antes de 2021".
Joias e acusações
Jayalalithaa era tudo menos uma figura fácil de ler. A chief minister foi várias vezes acusada de corrupção em tribunal. Em 1997, uma busca na sua casa revelou que tinha 800 quilos em objectos de prata, 28 quilos em ouro, 750 pares de sapatos e mais de dez mil saris. Em “cinco grandes malas” que o juiz encarregue do seu processo de corrupção teve de analisar estavam colares, anéis, pulseiras, e brincos… e “uma corrente com 2389 diamantes, 18 esmeraldas e 9 rubis”, escreveu o New York Times em 2000.
Foi considerada culpada de receber luvas num esquema de compra de mais de 40 mil televisões para as aldeias locais e esteve 30 dias na prisão. Depois, foi também acusada de ter obtido ilegalmente propriedades estatais, e ter usado a Tamil Nadu Marketing Corporation (Tasmac), que detinha o monopólio da venda de álcool no estado, para financiar muitos dos seus projectos, recorda a BBC.
Em 2014, estava à frente do Tamil Nadu quando foi condenada a quatro anos de cadeia por se ter aproveitado da sua posição para reunir propriedades, jóias caras e carros de luxo. A pena foi revogada oito meses depois e dias mais tarde já estava no seu gabinete a presidir novamente aos destinos do estado. Disse sempre que estava inocente e era vítima de complot político.
Mas há mais na lista de acusações. O Guardian recorda agora que os telegramas diplomáticos americanos tornados públicos pelo Wikileaks revelavam que Jayalalithaa era descrita por muitos que trabalhavam com ela como uma “autocrata absoluta” com um “domínio total” e inédito sobre o seu partido. Os colegas diziam que tinham de a tratar por Amma, Madam ou “nossa líder” e “prostrarem-se fisicamente diante dela em sinal de obediência”.
A sua influência foi crescendo. O culto da sua personalidade também, como comprovam as estátuas com a sua figura espalhadas pelo estado e a forma extremada como muitos dos seus “devotos” lhe prestam homenagem.
A poeta e cineasta Leena Manimekalai resumia assim ao Quartz India esta figura carismática: “A absoluta intolerância quanto a críticas e dissidências torna-a muito próxima de um fascista, mas temos de nos lembrar que também era vítima de um mundo de políticos machistas… Foi a vítima a querer tornar-se no opressor.”