Tresminas e Las Médulas, minas romanas a escavar um destino comum
Antiga mina a céu aberto em Leão é património da Humanidade, e aceita alargar essa protecção ao complexo mineiro de Vila Pouca de Aguiar.
Partilham a origem e, agora, pretendem construir um futuro comum. Las Medulas, em Leão, Espanha, e Tresminas, em Vila Pouca de Aguiar, são feridas abertas na paisagem há dois mil anos por um Império Romano sedento de ouro, e que o tempo ajudou a cicatrizar, e a valorizar, de forma diferente. A primeira completa em 2017 duas décadas como Património Cultural da Humanidade, classificação que aceita agora estender ao complexo mineiro português.
O trabalho começou há seis meses por iniciativa do lado português e, fruto de um interesse recíproco, a proposta de extensão da classificação de Las Médulas a Tresminas foi apresentada no mês passado na edição deste ano da Bienal Ibérica de Património Cultural, a Ar&Pa, em Valhadolid, numa iniciativa conjunta da Fundação Las Medulas, entidade que gere aquele património leonês que abarca três concelhos locais, e o município de Vila Pouca de Aguiar, que tem contado com o apoio da Direcção Regional de Cultura do Norte neste esforço de valorização do património mineiro da época romana.
Mais conhecido actualmente pelas suas termas e águas naturais gaseificadas ou pela indústria de extracção de granito, o concelho de Vila Pouca tem a sua história, antiga e recente, indelevelmente associada à mineração aurífera. Foi daqui, do planalto de Jales, que saiu o último ouro extraído em Portugal, na década de 90, e há dois mil anos, os romanos exploraram este território, de onde saiu muito desse metal precioso essencial para a cunhagem da mais valiosa moeda do Império, o Áureo, criada por Augusto na mesma altura em que o noroeste da península se submetia aos novos senhores.
“Daqui, bem protegido por legionários, o ouro seguia o seu caminho até Roma passando, para controlo e pesagem, por Astorga, pela via XVII, que ligava Braga, a Chaves”, explica a arqueóloga Patrícia Machado, do Centro de Interpretação de Tresminas. À mesma cidade, por outra via que partia de Bracara Augusta, a Via XVIII, ou Via Nova (da qual temos ainda troços e muitos marcos miliários no Gerês, por exemplo), chegava também o ouro extraído no maior complexo mineiro a céu aberto do Império, Las Médulas. Ambas eram minas estatais e das mais importantes fontes deste metal, justificando a sua exploração ao longo de dois séculos.
Nesses dois séculos de intensa actividade extractiva, as paisagens dos dois lugares mudaram profundamente. Geologicamente muito diferentes, em Las Médulas o ouro encontrava-se num aluvião, entre camadas de sedimentos argilosos e seixos rolados, cujo desmonte deu origem a vales de um laranja vivo, entrecortados por pequenos montes, espécie de pináculos deixados em pé. Nesse território assim transformado, as gerações seguintes exploraram outro recurso trazido para a península pelos romanos, o cultivo de castanheiros.mansos, enxertados para produção de castanha que, na Primavera e Verão, contrastam, na intensidade do verde, com a cor da terra.
Essa sobreposição de usos, vincada pela existência de castanheiros com centenas de anos por todo o território das antigas minas, valoriza Las Médulas, que tem ,inclusive, dentro dos seus limites um lago formado pelas escorrência de águas da exploração mineira que acabou por se transformar num santuário para espécies protegidas. por tudo isto, a Fundação Las Médulas pretende, aliás, alterar a sua classificação na Unesco de Património Cultural para Paisagem Cultural, categoria que não existia em 1997 e que dá melhor resposta às tipologias de património a proteger neste território em El Bierzo.
A paisagem de Tresminas - onde há curiosamente também um bem natural classificado, uma colónia de morcegos que habita num túnel, mas menor ocupação humana - é muito diferente. Desde logo porque aqui o ouro encontra-se em jazidas primárias, ou seja, em veios que se imiscuiram há milhões de anos num substrato rochoso de xistos, que foi trabalhado em três cortas - enormes buracos no monte que chegam a atingir, no caso da maior delas, a corta de Covas, os 430 metros de comprimento pelos 140 metros de largura, numa profundidade de 90 metros .
Os dois mil homens que aqui terão trabalhado, sob vigilância de soldados da Sétima Legião Gemina Felix, tiveram de recorrer ao fogo - misturado de seguida com água - para mexer com a resistência da pedra, que se desfazia, seguindo, manualmente ou em carros de bois, para um engenhoso processo de moagem montado no vale, até à obtenção de um pó em que o metal, mais pesado, acabava por ser facilmente separável. E tal como em Las Médulas, a falta de água no local das minas foi também engenhosamente resolvida pela construção de uma rede de canais que a traziam de locais a dezenas ou centenas de quilómetros de distância.
O director-geral do Património de Castela e Leão acredita que a candidatura de Tresminas vai “contribuir, sem dúvida, para relevar os valores comuns e potenciar em conjunto estes dois espaços arqueológicos singulares” que considera serem duas “referências” na arqueologia da península. Em resposta, por e-mail, a algumas perguntas do PÚBLICO; Enrique Saiz elogia o bom estado de conservação das marcas da presença romana nos dois complexos, que com uma adequada valorização, desfrute pelo público e contributo “notável” para o conhecimento daquela época permitem, diz, optimismo quanto às vantagens da sua classificação conjunta.
A Câmara de Vila Pouca de Aguiar espera que Tresminas, um sítio ainda desconhecido de muitos portugueses, venha a ganhar com a experiência de duas décadas de Las Médulas enquanto património da Humanidade. Em quase vinte anos, explica Enrique Saiz, aquele território junto à fronteira entre a Galiza e Leão conseguiu melhorar a informação e as condições de recepção e controlo de um fluxo cada vez maior de visitantes, ao mesmo tempo que assegurava a manutenção dos espaços arqueológicos e levava a cabo estudos para uma melhor compreensão da ocupação daquele território antes, durante e após a presença romana na zona.
“O sítio está bem protegido”, assinala Saiz, acrescentando que, se há algo a destacar é precisamente a continuidade de trabalhos e estudos, garantidos nos próximos anos através de um protocolo com o Centro Superior de Investigações Científicas de Espanha. Já Tresminas deve muito, em termos de estudo, a um casal de arqueólogos, o alemão Jurgen Wahl e a suiça Regula Clerici Wahl, que há 30 anos se aventurou a seguir as pisadas dos romanos nesta zona, num esforço continuado actualmente, e com regularidade, pela Universidade de Hamburgo. Mas outras instituições, como a vizinha Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, ou a Universidade do Porto, têm-se interessado por este património, garantindo que ele continuará a ser investigado.
Área das antigas minas deverá tornar-se parque arqueológico
O investimento no actual projecto de valorização do património romano de Tresminas é uma das medidas de compensação pela construção do Sistema Electro-produtor do Tâmega, conhecido também por Cascatas do Tâmega. Parte dos 50 milhões de contrapartidas a pagar pela concessionária, a Iberdrola, são destinados a Vila Pouca de Aguiar, concelho que afectou 1,8 milhões para este projecto, que está a ser acompanhado pela Direcção Regional de Cultura do Norte, explicou ao PÚBLICO o autarca Alberto Machado.
Classificada actualmente como Imóvel de Interesse Público, a área das antigas explorações de ouro romanas de Tresminas deverá ser transformada num parque arqueológico, explicou ao PÚBLICO o director regional de Cultura, António Ponte, que apoiou os contactos de Vila Pouca de Aguiar com a Fundação Las Médulas e a Direcção-Geral de Cultura de Castela e Leão, entidades responsáveis pelo património mineiro classificado nos concelhos de Carucedo, Puente de Domingo Flores e Borrenes que já tiveram oportunidade de se deslocarem a Portugal, para conhecerem Tresminas.
A reacção dos espanhóis à proposta portuguesa foi de total abertura a este alargamento da classificação já atribuída a Las Médulas, que segue o sentido inverso do que aconteceu, em 2010, entre a Paisagem Cultural de Foz Côa e Siega Verde, em Ciudad Rodrigo, estação arqueológica no vale do rio Águeda onde foram também descobertas gravuras rupestres. Mas até que esse intento, agora comum, seja alcançado, haverá um trabalho imenso a fazer, desde o cadastro de toda a área de prospecção mineira aos necessários estudos históricos e de valorização cultural e turística que enquadrarão as pretensões Luso-Espanholas. Pretensões essas que, como é habitual nestes processos envolvendo a Unesco, terão de ser apresentadas àquele organismo das Nações Unidas pelos respectivos ministérios dos negócios estrangeiros.
O director-Geral de Cultura de Castela e Leão garante que o organismo que lidera vai colaborar com todo o processo de candidatura. Mas, tal como o seu congénere do Norte de Portugal, nota que a parceria não se cinge a esta iniciativa concreta, pretendendo-se também que exista uma troca de experiências e, a médio prazo, que as entidades gestoras dos dois sítios arqueológicos apresentem projectos que abarquem questões comuns, como a gestão e conservação dos recursos, a investigação e a promoção e divulgação junto do público. Com a prudência que as tarefas que há ainda pela frente exigem, António Ponte acredita que este é um projecto com ganhos para “ambas as partes”.
O presidente da Câmara de Vila Pouca de Aguiar acredita que a parceria será um passo essencial para valorizar, em definitivo, um património conhecido há décadas mas que só há alguns anos ganhou condições para ser mostrado aos portugueses e ao mundo. O próprio centro de interpretação situado na aldeia de Tresminas só há um ano passou a ter uma gestão estável, com a sua entrega à associação de Desenvolvimento local Aouro, depois de experiências menos positivas com subconcessões a um privado e administração por uma empresa municipal.
O autarca quer colocar o património romano ao serviço de uma estratégia que, com as termas e os produtos locais, ajude a atrair visitantes a um concelho com apenas 15 mil habitantes e muito dependente do sector primário. Vila Pouca de Aguiar está hoje na confluência de duas auto-estradas que a deixam mais perto de Espanha e das principais cidades portuguesas, mas este presente tem sido “envenenado” pelo facto de a A7 e a A24 serem as auto-estradas “mais caras do país”.Este entrave tem merecido protestos desta e de outras autarquias da região, que reclamam que estas infra-estruturas deveriam estar ao serviço das populações.