Trump é Trump

A solução governativa encontrada em Portugal impediu que o PS tivesse o destino dos socialistas franceses, o que não deu, por enquanto, espaço ao aparecimento de uma alternativa populista e conservadora capaz de mobilizar os descontentes das políticas da austeridade e da globalização.

Muitos tentam acordar do pesadelo que foram os resultados das eleições americanas com a ilusão que vivem numa ilha imune ou que Trump Presidente não será o Trump nacionalista xenófobo da campanha eleitoral. Nada de mais ilusório, como se viu com a escolha de conservadores radicais para o seu governo que evidenciam o risco de sérios retrocessos nos direitos individuais e das minorias e no ambiente.

Em Portugal, a preocupação com a emergência do populismo noutros países europeus não é devidamente acompanhada pela reflexão sobre a possibilidade de ele irromper também por aqui. Já os brasileiros, como pude constatar, pensam que vivem numa ilha-continente.

Mas nenhum país está imune ao efeito Trump, não só económica mas sobretudo política e culturalmente. Estamos num mundo de cidadãos interconectados pela Internet, em que as redes sociais e os meios de comunicação de massas propagam tendências como ondas de choque. É hoje claro que existe um debate perverso sobre a identidade que ameaça a  afirmação da diversidade e dos direitos das minorias e fractura as sociedades. Portugal, apesar do mito da unicidade cultural, será cada vez mais diverso, o que é um fator de enriquecimento, apesar de também por cá exista quem considere o outro como uma ameaça.

Através das redes sociais cresceram correntes de opinião alimentadas por teorias conspirativas e por mentiras feitas factos – o mundo pós- verdade. As redes sociais não são só o domínio dos indivíduos empoderados, mas cada vez mais de grupos de pressão política, como se viu na campanha de Trump e no processo de impeachement no Brasil. Exemplo paradigmático são os think thanks e falsas ONG, financiadas por companhias petrolíferas, que negam o impacto da atividade humana no aquecimento global, cujos dirigentes, como Myron Ebell, fazem parte da equipa de transição de Trump.

Mesmo depois de eleito, Trump continua a “viver” neste mundo: no Twitter, como sempre, declarou que tinha ganho o voto popular se descontados os “milhões de pessoas que tinham votado ilegalmente“. As redes sociais portuguesas não estão imunes às teorias conspirativas e ao mundo pós-verdade. Basta ver o que se escreve sobre a guerra da Síria, apresentada como uma conspiração dos Estados Unidos, que estaria mesmo por trás do Daesh.

Nenhum país parece estar imune ao contágio do nacionalismo identitário e ao revivalismo do conservadorismo religioso que o acompanha. Nenhum escapa a mais de uma década de desinformação sobre os muçulmanos, com a identificação abusiva do Islão com a violência, que facilita o sucesso do discurso xenófobo de Trump e dos populistas europeus. Portugal não escapou a esta retórica, como demonstra o recente estudo do Instituto de Ciências Sociais, segundo o qual os portugueses têm uma “maior resistência a abrir as fronteiras a muçulmanos”.

No Brasil, a vitória de Trump remete para as eleições presidenciais de 2018, com a ascensão do deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro, que se vê como o Trump brasileiro, e de políticos evangélicos como o senador, e bispo da IURD, Crivela, eleito prefeito do Rio de Janeiro.

O apoio que Trump tem dado a Nigel Farage, lider da extrema-direita britânica, indo ao ponto de sugerir a sua nomeação como Embaixador nos Estados Unidos, é uma prova do seu empenho direto no crescimento do populismo.

A chamada “normalização” de Donald Trump passa por considerar que o cargo se encarregará de moldar a sua ação, mas é muito perigoso subestimar as consequências de uma política americana nacionalista, próxima da visão que Putin tem do mundo, para a segurança internacional. A escalada da ofensiva russa contra Alepo depois da eleição de Trump é já uma realidade. A escolha de Michael Flynn, conhecido pelas suas declarações islamofóbicas, para Conselheiro Nacional de Segurança, é mais uma prova de que Trump é Trump.

Houve uma notável exceção europeia à ilusão da normalização de Trump. Angela Merkel anunciou os princípios e valores pelos quais julgaria a ação do Presidente eleito dos EUA, ao mesmo tempo que o seu partido afirmava a sua determinação em acelerar o desenvolvimento da política de defesa europeia, incluindo no domínio da dissuasão nuclear, como resposta à diminuição das garantias americanas.

Barack Obama foi à Alemanha depositar as suas esperanças em Angela Merkel e na sua capacidade para liderar a União Europeia e ser um fator de estabilidade da ordem internacional. Esta, porém, é uma tarefa difícil: não será fácil combinar as suas posições de princípio em matéria de valores com a imposição de austeridade que nega a justiça social, obstáculo à melhoria das suas relações com os países do Sul da Europa, onde poderia encontrar os melhores aliados.

A solução governativa encontrada em Portugal impediu que o PS tivesse o destino dos socialistas franceses, o que não deu, por enquanto, espaço ao aparecimento de uma alternativa populista e conservadora capaz de mobilizar os descontentes das políticas da austeridade e da globalização.

Para prevenir as consequências da mudança política nos EUA, o melhor é assumir que Trump será Trump e fazer novamente do combate pela democracia, pelos direitos individuais, políticos e sociais, a grande causa em que temos todos que nos empenhar.

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