O prato-estrela das novas estrelas
A última edição do mais famoso guia gastronómico do mundo foi generosa com Portugal: choveram nove novas estrelas. Pedimos aos chefs agora distinguidos para escolherem o prato que melhor sintetiza a sua forma de trabalhar.
Benoît Sinthon - Il Gallo d’Oro, Funchal
Um foie tropical
Mesmo com o sotaque français que lhe denuncia a origem, Benoît Sinthon é já um madeirense dos quatro costados. E nem só pelo casamento que para ali o arrastou. Adaptou-se à língua, aos múltiplos encantos e prazeres da ilha, defende e valoriza os produtos locais como nenhum outro.
Um prato que testemunha esta complementaridade é, por isso, o espelho dessa vivência. “Mostra também o trajecto e visão da cozinha que estou a fazer”, reforça, no seu impecável português de erres prolongados.
E ao casar a banana com a sofisticação do foie, o chef do Il Gallo d’Oro tem um duplo objectivo. Por um lado, usa o produto local, algo que é familiar; por outro, procura desmontar a ideia de que o foie é um produto gordo, pesado. “É uma maneira diferente de servir: é foie, mas tropical”, esclarece.
A ideia é que possa funcionar numa lógica de descoberta e sedução para quem se inicia no foie, que parece ter resultado. “É uma entrada muito apreciada que fica todo o ano na carta”, revela o chef.
A base, claro está, é um foie. Mas em dueto, ou seja em duas texturas. A tradicional terrina e outra em forma de neve, que é congelada e depois raspada como se de um queijo velho de tratasse. Cai em flocos que se derretem depois na boca criando um sedutor jogo de textura e sabor.
Já a banana, em compota, que é doce e redonda, equilibra com ananás e lima que lhe conferem a necessária acidez. Para o crocante que acentua o jogo de texturas são usados cereais, sendo o conjunto servido com um sorbet de Coca-Cola.
E porquê Coca-Cola, questiona o chef, para logo adiantar a resposta: porque é feita à base de caramelo, que faz uma óptima combinação tanto com o foie como com o ananás. É feita uma redução para retirar o gás e concentrar o caramelo.
“É um foie tropical que tem frutos exóticos, diferentes texturas e sedução. Tudo a ver com a Madeira”, conclui Benoît.
Depois dos festejos e da euforia colectiva pela conquista da segunda estrela Michelin, o chef diz que o objectivo é manter o rumo e ganhar consistência. “O segredo não é mudar muito mas reforçar o que foi feito”, frisa, acrescentando que “o sabor é que sempre o último objectivo”. J.A.M.
Ricardo Costa - The Yeatman, Vila Nova de Gaia
O mar à mesa sob a forma de caldeirada
Têm sido dias de glória para o jovem que comanda os fogões do The Yeatman. Depois da noite de Girona onde viu chegar a segunda estrela, quase nem teve tempo para festejar e seguiu para o Japão, onde foi distinguido como “Chef Revelação” na gala anual dos troféus da prestigiada associação Relais & Châteaux. Entre representantes de 64 países de 530 hotéis de charme.
A distinção destaca a sua “cozinha sensacional” e “incrível competência” que “acrescenta modernidade e criatividade aos pratos tradicionais”.
O prato foi escolhido antes de viajar para o Japão e de conhecer a distinção, mas são pressupostos que encaixam como uma luva na caldeirada que elege como a sua criação mais representativa. É um dos mais tradicionais e reconhecidos cozinhados das zonas piscatórias do nosso país e Ricardo Costa, natural de Aveiro, não fugiu a essa influência.
Os sabores intensos, as ligações com o mar e os mariscos são uma constante na sua cozinha, que procura quase sempre o caminho da sofisticação da tradição.
A sua caldeirada é, no entanto, um prato recente, muito embora de concepção antiga. Na carta do The Yeatman já havia o peixe-galo em molho de caldeirada, mas agora passa mesmo a haver uma caldeirada. É claro que em versão sofisticada e elaborada, mas com todos os condimentos e sabores da receita típica.
O peixe-galo é cozinhado lentamente a baixa temperatura, para manter a textura firme mas suave, juntando-se-lhe lingueirão, mexilhão e camarão. O mar e a tradição levados à mesa, em louça que foi especificamente concebida para o novo prato. Em formato côncavo, quase como um tigela, e em plano elevado. J.A.M.
Rui Paula - Casa de Chá de Boa Nova, Leça da Palmeira
Coelho bravo em memória da avó
Desde sempre que os sabores e produtos da tradição são a imagem de marca da cozinha de Rui Paula. Não é de estranhar, pois, que, mesmo num restaurante de mar, o criativo e irrequieto cozinheiro eleja um prato que evoca os sabores e ambientes de infância.
“Era com couves colhidas na horta que a minha avó alimentava os coelhos e foi com a memória desses tempos que foi concebido o prato”, conta o chef que trouxe agora a prestigiada estrela Michelin para brilhar no emblemático edifício do arquitecto Siza Vieira. Às duas peças de coelho — sela e carré — junta a típica couve portuguesa, puré de couve roxa, a aveia em duas texturas e finas lâminas de cavala da Índia fumadas.
Há também uma vinagreta e um molho à caçador que remetem para a cozinha da avó duriense, e para compor o contexto de caça o prato é servido num troço de tronco de sobreiro. Inspiração rústica, numa criação de assumida elegância, técnica e conceptualmente exigente.
A couve é apenas bringida e embebida na vinagreta para envolver a sela, como se de uma trouxa se tratasse, enquanto o carré é marinado em citronela antes de ir a corar no sauté. A aveia acompanha em duas texturas. Num caso é salteada com chalota e chili e envolve-se com mostarda wasabi, no outro o crocante tosta no forno com chouriço ibérico. Com uma carta requintada e delicada à base de peixes e criações sofisticadas como a “Lula Chanel”, Rui Paula elege um dos dois únicos pratos de carne que propõe nos menus da Boa Nova. É a memória dos sabores da avó, uma cozinha que usa produtos da terra e de temporada e com a qual se identifica.
Identidade e sabor são também os desígnios que há muito traçou para o seu percurso de cozinheiro e restaurador. E mesmo com a chegada da distinção que desde sempre ambicionou, garante que nada o fará mudar de rumo. “Quero manter os meus restaurantes e ver os clientes cada vez mais contentes e satisfeitos”, sintetiza. Já quanto ao horizonte de uma segunda estrela, diz que esse não é um sonho imediato e mostra-se pragmático. “O melhor caminho para a segunda é procurar manter a primeira.” J.A.M.
Vítor Matos - Antiqvvm, Porto
Uma horta doce que sabe a infância
Num corrupio entre compromissos já assumidos e uma presença na República Dominicana, o chef que trouxe um nova estrela para a beira Douro portuense nem teve tempo para a fotografia. As memórias e as emoções sempre marcaram o seu trabalho, e por isso elege um prato que assim o testemunha.
É com certa emoção que explica as raízes humildes em Trás-os-Montes e o contexto de carências, onde o açúcar era coisa quase imaginária. Pois bem, pediam-lhe uma sobremesa que invocasse a infância e Dieter Koschina e Mateo Ferrantino, os anfitriões do festival que juntava a nata dos fogões no restaurante Vila Joya, não admitiam escusas. A memória apenas lhe trazia o frio das hortas, aromas da terra húmida, e os legumes frescos que eram a base da alimentação das gentes pobres e hoje são produtos ricos.
Não havia volta a dar e a solução foi pegar no açúcar da imaginação e fazer doces os legumes. Uma horta doce onde não falta abóbora, cenouras, tomate, morangos, alfaces, beterraba ou pimento. Tudo simulado e usando uma panóplia de produtos, muita técnica, imaginação e criatividade com que Vitor Matos recriou a horta da sua infância em forma de sobremesa. E nem falta a terra ou o regador que então usava para regar as plantas. A terra é agora de chocolate e é regada com uma redução de Moscatel do Douro e citrinos que a tornam saborosa e húmida.
“É curioso que é a sobremesa que mais pedem”, relata o chef, com evidente orgulho, acrescentando que está na carta desde Março e assim vai continuar. “Pode levar algum acerto de sabor ou concepção, mas mudar não vai mudar”, assegura.
Para além da emoção que procura transmitir, Vítor Matos acentua a dimensão da memória de sabores e produtos, “que é importante que os cozinheiros procurem transmitir às gerações futuras”.
É por isso que, além das formas, sabores, texturas e imaginário de outros tempos contidos no prato, esta sobremesa incorpora também um elemento bem contemporâneo: um código QR que remete para o texto explicativo na página de Internet do Antiqvvm.
Aí se explica como nasceu o prato, e bem se entende o entusiasmo e emoção com que foi concebido. J.A.M.
Sergi Arola - Lab, Sintra
Molejas e Portugal pelas mãos de um espanhol
O Livro de Pantagruel tem uma dezena de receitas com molejas, mas não se espante se nunca tiver ouvido falar nelas. São uma raridade nos talhos — em dez telefonemas que fizemos a estabelecimentos de Lisboa, nenhum as tinha, só dois aceitaram encomendá-las propositadamente a matadouros e os outros estranharam o pedido. Trata-se da glândula que se encontra junto à traqueia da vitela (também se come a do porco, mas há quem diga que é menos saborosa).
Se estamos a contar isto tudo é porque, de uma forma ou de outra, as molejas não abandonam o Lab by Sergi Arola, no Penha Longa Resort. “Estou muito satisfeito com a moleja de vitela, servida com aromas de caldo verde”, afirma Sergi Arola sobre a versão de Outono, presente na secção de entradas (35 euros). “Adoro a moleja. É o único produto que tenho na carta durante todo o ano. Este é um prato que fizemos com inspiração na cozinha portuguesa. As molejas têm um sabor e uma textura mágicos.”
O Lab convidou vários jornalistas para celebrar a sua primeira estrela Michelin. Depois de uma “selecção de snacks e petiscos clássicos”, que incluíam uma volta a Espanha em sabores regionais condensados em pequeníssimos hors d’oeuvres, de uns “raviólis de camarão fumado” e de “batatas souflé”, lá vêm então as molejas para a mesa — e cada um coloca as que quer no prato que tem o caldo. “Fomos trabalhando, dando-lhe voltas, inspirando-nos em pratos portugueses, procurando as texturas, as temperaturas para dar-lhe um conteúdo mais moderno”, diz Sergi Arola.
Primeiro, é cozida em baixa temperatura, depois é assada e em seguida fumada com especiarias — “uma mistura secreta, com 14 especiarias, inspirada na cozinha kosher”, conta o chef. “Provei esta mistura no Schwartz’s, em Montreal. Gostei tanto dela que a comprei e levei para Espanha. Mas não me quiseram dizer que especiarias tinha e comecei a trabalhar até a conseguir — um pouco mais de cominhos, um pouco mais de pimenta, um pouco mais de canela… Muito fácil.”
O caldo verde veio da preocupação de fazer uma ponte com o país onde está. Arola e o chef residente, Milton Anes, trabalham há algum tempo sobre “pequenos toques de cozinha portuguesa, incorporando-a na cozinha” que fazem no Lab. “É fundamental: estou em Portugal. Isto não é um restaurante de cozinha espanhola, é um restaurante de cozinha de Sergi Arola. Independentemente de ser espanhol, ou português.”
Este foi “um ano difícil” para o chef, que fechou o seu restaurante com duas estrelas Michelin em Madrid (Arola e a ex-mulher, Sara Fort, quiseram pôr um fim a uma relação profissional de 20 anos). “[A estrela que agora recebeu para o Lab] é uma oportunidade de recomeçar em Portugal, que é um país que me encanta; em Sintra, que é um dos meus sítios favoritos do mundo; e ao lado de Lisboa, que é das minhas capitais preferidas. É um reconhecimento e certifica um trabalho bem feito”. F.G.H.
Alexandre Silva - Loco, Lisboa
Acreditar, por louco que pareça
“Não há um prato estrela no Loco porque não queremos ficar agarrados a pratos específicos.” Alexandre Silva compreende que lhes estejamos a pedir para eleger o prato que represente a essência da sua cozinha, mas foge disso. “Fugimos de clássicos porque queremos estar sempre a fazer coisas novas.”
O que nos mostra, em vez disso, é algo que vem também para as mesas durante a refeição no Loco mas que é um objecto e uma técnica de cozinha: o balão de café onde faz uma infusão que acompanha o prato de peixe aqui chamado de “captura do dia”. “Temos sempre o peixe do dia, que fazemos de várias maneiras, em argila, ao sal, ao vapor com algas ou com esta infusão que leva peixe seco da Nazaré, cogumelos fermentados, coentros, citronela, malaguetas. É um sabor de umami muito português.”
E porquê esta escolha? “É uma técnica que diz muito do que é o Loco. Trata-se de um processo arcaico mas é sobretudo uma forma de apresentar um prato que pode ser feito à frente do cliente. Além disso é um objecto lindíssimo.” É, então, importante mostrarem aos clientes as técnicas que usam? Não é bem isso, explica Alexandre. “Realmente importante é podermos interagir com o cliente. Não somos artistas de circo nem ilusionistas e esta é uma maneira de chegar perto do cliente com aquilo que sabemos fazer e que pode ser interessante para ele. Mas não podíamos apenas cortar uma cebola, tinha que ser algo diferente.”
Este é um restaurante que se apresenta como tendo “uma proposta gastronómica que vai muito para além de uma refeição”. Propõe-se ser “uma corrente criativa constante, um estado de espírito, uma atitude” e “uma experiência total”, com uma cozinha que “valoriza os produtos nacionais e a natureza e vive ao sabor das micro-estações”, inspirando-se na “tradição e nas referências identitárias da gastronomia nacional” mas “subvertendo-as e elevando-as a outro nível conceptual”. E, para não o esquecer nem se desviarem da linha traçada, Alexandre e a sua equipa fizeram um manifesto.
Isso dá-lhes uma coerência que o chef acredita ter sido uma das razões que levaram o Guia Michelin a atribuir-lhes uma estrela no primeiro ano de vida. “Nunca achei que a nossa irreverência fosse um problema para eles. O DiverXO [de David Muñoz, em Madrid] tem três estrelas e é muito mais irreverente. Não é uma questão de se ser clássico ou irreverente, é uma questão de consistência.” E essa passa por “manter o conceito até ao fim”.
Alexandre Silva — que é, com a mulher Sara Gomes, proprietário do restaurante — está determinado a fazer isso com o Loco. Houve, sobretudo no início, quem o criticasse pelo lado de espectáculo que o restaurante tem. “Algumas críticas deixaram-me triste”, admite. Mas sabia que não podia afastar-se do caminho traçado. “Não posso abrir um dia com pães pendurados no tecto, vir alguém que diz que estou errado e amanhã já estou a pôr bifes no menu e a vender almoços a 20 euros.” A filosofia só pode ser esta: “Se não acreditares no que estás a fazer, ninguém vai acreditar.” A.P.C.
Henrique Sá Pessoa - Alma, Lisboa
Um polvo para falar de Portugal
Também Henrique Sá Pessoa tem alguma relutância em eleger um único prato que represente a sua cozinha. Mas como foi isso que lhe pedimos, pensa um pouco e acaba por escolher o polvo. “Foi um ingrediente que trabalhei ao longo dos anos, porque é tradicional, muito presente em Portugal e Espanha e que não encontramos em muitas outras gastronomias.” A sua visão para o Alma, desde que o mudou para o Chiado e o assumiu como o seu “regresso à alta cozinha”, passa por aí: usar produtos que são “ícones nacionais” e mostrá-los ao mundo no seu melhor.
Não hesita em dar os créditos a quem os merece. “A técnica que uso para confeccionar o polvo, e que o deixa tenro, foi desenvolvida pelo Bertílio Gomes [do Chapitô à Mesa]. A diferença aqui é que o servimos com um molho inspirado no romesco espanhol mas no qual usamos avelãs e amêndoas, uma pasta de miso assada, pão de Mafra tostado. São sabores que puxam à paprika e ao fumo, fazem lembrar o polvo à galega, mas tem os pimentos que também usamos muito em Portugal.” Leva ainda uma água de coentros texturizada e umas pequeníssimas esferas de azeite porque Sá Pessoa considera que “a nossa cozinha tradicional peca pelo excesso de azeite”.
Se escolhe este prato é por considerar que ele exemplifica bem essa preocupação que tem em valorizar o produto. “Puxo muito pelo leitão, o polvo, o salmonete porque sei que são diferentes dos que encontramos noutros países. Como atraímos uma clientela mais internacional, prefiro que um estrangeiro prove um produto que não vai encontrar com tanta facilidade noutro sítio e que fique com essa memória.” Recorda, por exemplo, como este ano, no Congresso Estrela Damm, que se realizou em Lisboa com chefs portugueses e espanhóis, e no qual Sá Pessoa optou por falar sobre os peixes dos Açores, Andoni Luis Aduriz, do Mugaritz, “que é um dos maiores chefs do mundo, nunca tinha visto uma craca e ficou maravilhado”.
Por outro lado, não acredita muito em contar histórias extraordinárias sobre os pratos, embora reconheça que os clientes gostam de as ouvir e perceba que faz a diferença quando, por exemplo, explica que o espaço do Alma, no Chiado, era um antigo armazém da histórica livraria Bertrand e que a forma como as garrafas estão dispostas, numa espécie de estante com luz que ocupa toda uma parede, faz uma ligação à memória do que foi aquele lugar quando estava cheio de livros.
Acredita, sim, que o aumento de estrelas Michelin para Portugal beneficia todos. “As estrelas são por vezes criticadas por premiarem uma cozinha considerada cara ou elitista, mas as pessoas esquecem-se que quem nos procura vem jantar um dia ao Alma, no dia seguinte vai ao Mercado da Ribeira ou vai à Tia Alice ou à geladaria. Quanto mais restaurantes com estrela houver mais restaurantes tradicionais e mais lojas vão beneficiar.”
Importante mesmo era que, no próximo ano, entre as estrelas que vierem, possa estar um três estrelas. “Será um passo muito grande para a nossa gastronomia. A partir daí os holofotes apontados para Portugal serão muito maiores e entramos noutro campeonato.” A.P.C.
Miguel Laffan - L’and Vineyards, Montemor-o-Novo
O salmonete alentejano
O Alentejo, do interior à costa, cabe num prato. Pelo menos a julgar pela descrição que Miguel Laffan faz do salmonete que é servido no L’and Vineyards.
Como manda a tradição, o peixe é assado (neste caso na salamandra). Vem para a mesa com miga de coentros e berbigão, um molho à base de um estufado de lulas, e lulas salteadas, com uma salada de pimentos crocantes por cima. É ou não o Alentejo? “Temos a ligação óbvia das migas de coentros, que são mais do prado alentejano, e temos o peixe de Setúbal a representar a costa vicentina”, diz o chef ao telefone.
“Foi um prato relativamente fácil [de conceber]: sempre gostei muito de coentros, de berbigão, e adoro salmonete. Foi quase a junção de coisas que eu adoro e faziam sentido.” Há três anos que está na carta e tornou-se já “um clássico do L’and”.
Todo o peixe que entra no restaurante de Montemor-o-Novo saiu do mercado de Setúbal através de José Alberto, um fornecedor que abastece também vários restaurantes da zona de Cascais (onde Laffan cresceu). “É uma relação muito directa, de amizade e respeito mútuo. Deixo-me nas mãos dele.”
O chef conta também com a perícia de Eduardo Vieira, da Fumadis – “há quem seja um caça-tesouros, ele é um caça-produtos”, que são preciosidades à sua maneira. “Vemos uma coisa qualquer num país estrangeiro, ligamos-lhe, ele vai à procura e encontra. A especiaria mais exótica, a melhor trufa, o citrino japonês.” Não é pelo negócio, é por paixão mesmo.
Mas cada vez mais a tendência (global) é cozinhar-se com o que está mesmo à mão. No caso de Laffan, isso significa olhar, por exemplo, para uma cabeça de xara. “É uma terrina de cabeça de porco típica aqui do Alentejo. Não é tão estranho quanto parece.” A presa de porco vem da Herdade do Freixo do Meio, também em Montemor-o-Novo, que desenvolve animais de raça alentejana, de produção “biológica e sustentável”. O chef está agora a terminar a concepção do prato e pode já adiantar que terá um puré de alho doce, salsa, aipo e salsify (uma raiz comestível).
O tempo de trabalho à volta de um prato novo varia muito, mas para estar “minimamente apresentável” são precisos dois meses. “Depois, leva-me mais seis meses a aperfeiçoá-lo, para ficar no expoente máximo.” É um trabalho de filigrana: “Vou afinando pontos que provavelmente só eu é que reconheço no prato. Sal, acidez, amargura, textura... É um processo muito mais para mim do que para o cliente. É o caminho para a perfeição.” O caminho que lhe valeu recuperar agora a estrela que perdera em 2015, quando se afastou do L’and. Mas isso são águas passadas. F.G.H.
Luis Pestana - William, Funchal
Uma estrela à moda da Madeira
O objectivo estava traçado assim que o William, do Belmond Reid’s Palace, abriu as portas, há menos de dois anos: conquistar uma estrela Michelin usando produtos regionais da Madeira. Luís Pestana, que trabalha neste histórico hotel do Funchal há 26 anos, lançou as mãos à obra, com uma carta que teve a curadoria de Joachim Koerper (do Eleven, também com uma estrela Michelin).
Se pedirmos ao chef madeirense um prato que resuma o seu trabalho, ele escolhe o “sortido de peixe”. “Tem a ver com a Madeira, com o facto de a ilha estar rodeada por peixe. Usamos o que aparece no mercado, com calibres e texturas interessantes. Nunca é fixo.” Tanto pode ser robalo, como pargo, garoupa, cherne, salmonete, rascasse… “Pode variar todos os dias e temos sempre uma consistência de peixe mais fresco”, afirma o chef. “Os pescadores nem sempre conseguem os mesmos peixes, e nem sempre conseguem os calibres que precisamos. Estamos à vontade para ser flexíveis e trabalhar com o que aparece.”
O sortido vem acompanhado com puré de batata vitelotte (que como é arroxeada faz um puré roxo), polvo, lulas e emulsão de salsa (e custa 39,50€.). “Quisemos recriar um prato que identificasse a oferta marítima que temos. Não temos os bivalves porque não há areal na nossa costa, mas temos alguns mariscos”, adianta. “Polvo e lula identificam um pouco a ilha — talvez não os que identificam mais, mas quisemos fazer uma harmonia de ingredientes do mar.”
Ao contrário de todos os outros, este é o prato que estará sempre na carta, adianta Luís Pestana. Só se alteram os acompanhamentos. “Neste momento é assim, eventualmente na próxima carta pode ser ou não, se acharmos que os ingredientes ainda estão bem para a época. Caso contrário, alteramos.”
No William não se sente a necessidade de seguir à risca as estações do ano, devido ao clima subtropical da Madeira. “Temos a vantagem de os produtos não ficarem completamente fora de época no fim ou início de cada estação”, refere Luís Pestana. E há sempre muito com que trabalhar. “A Madeira é peixe, flores, frutas. É muito conhecida pela banana — o peixe-espada com banana talvez seja o prato mais emblemático. Mas não podemos ter todos os pratos com frutas, embora eu goste de as combinar com vários elementos.”
Se, como dissemos, há mais de um quarto de século que o chef se dedica ao Reid’s (e há sete que é chef executivo), a estratégia para conseguir a estrela Michelin surgiu quando o hotel decidiu transformar o seu principal restaurante, mudando-lhe toda a identidade. Ficaram para trás os clássicos da cozinha francesa, chegou uma cozinha mais atenta à própria ilha. O reconhecimento por parte do mais prestigiado guia de gastronomia do mundo veio trazer o “reconhecimento” de que o caminho se faz pelos trilhos madeirenses. F.G.H.