Não há presidente que tenha escapado à corrupção na Coreia do Sul

Há semanas que centenas de milhares de pessoas protestam contra Park Geun-hye, envolvida num caso de corrupção. O fenómeno está entranhado na política e nos negócios do país, mas há cada vez mais pressão por mudanças.

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Manifestantes em Seul contra a Presidente, Park Geun-hye, investigada num caso de corrupção AFP/JUNG YEON-JE

Roh Moo-hyun tinha saído bem cedo de casa naquela manhã de Maio, em 2009, acompanhado do seu guarda-costas. Ia fazer uma caminhada na zona montanhosa perto da aldeia onde morava, no sudeste da Coreia do Sul. Há pouco mais de um ano que tinha terminado o mandato como Presidente do país e passava agora os dias na sua aldeia natal de Bongha, onde dedicava o tempo à sua quinta de criação de patos e a caminhadas pela montanha. Mas naquela manhã, o passeio terminou abruptamente com a sua queda no rochedo conhecido como Mocho.

Antes de sair de casa, Roh tinha deixado um bilhete em que justificava o seu suicídio: “O resto da minha vida seria apenas um fardo para os outros.” A razão dada relacionava-se com uma doença incurável de que o ex-Presidente sofreria, mas poucos acreditaram nela. Algumas semanas antes, Roh tinha sido interrogado pela polícia pelo alegado envolvimento num caso de corrupção. Em causa estavam subornos no valor de seis milhões de dólares (5,6 milhões de euros) que familiares do ex-Presidente teriam recebido para conseguir favores junto dele.

A morte de Roh é o desfecho mais dramático de um caso de corrupção que envolve um ex-líder sul-coreano, mas expõe um problema profundo na política deste país. Esta semana, a Presidente actual, Park Geun-hye, disse estar disponível para se demitir face à pressão insustentável que surgiu depois de uma amiga íntima ter sido detida sob acusação de ter extorquido dinheiro de grandes empresas, beneficiando da sua proximidade com a Casa Azul (residência oficial do chefe de Estado). Ao mesmo tempo, o Parlamento prepara-se para discutir a sua destituição – que seria a primeira nas três décadas de democracia do país.

Na verdade, porém, Park apenas parece seguir uma longa tradição que atinge políticos sul-coreanos de elevado estatuto. Antes do trágico caso de Roh Moo-hyun, já dois filhos do seu antecessor, Kim Dae-jung, tinham sido presos por corrupção. Houve ainda Lee Myung-bak, que antecedeu Park, cujo irmão foi condenado a dois anos de prisão por ter recebido meio milhão de dólares (470 mil euros) para tentar obter favores junto do Governo.

Tal como o escândalo que envolve agora Park, nenhum dos anteriores presidentes foi implicado directamente nos subornos investigados, mas sim pessoas do seu círculo familiar. A corrupção é uma das questões mais preocupantes para os sul-coreanos e não passa quase um dia em que não haja uma notícia sobre alguma investigação ou condenação. Um estudo de 2014 realizado pelo Instituto Coreano de Administração Pública mostrava que 78,7% dos inquiridos acham que a corrupção é “grave” entre os funcionários públicos de topo e 90% diz o mesmo acerca dos deputados.

Tradição milenar

O fenómeno não fica confinado à política. Em Agosto, o vice-presidente do grupo Lotte, um dos maiores conglomerados do país, apareceu morto poucas horas antes de ser ouvido pelo Ministério Público no âmbito de uma investigação a um esquema de corrupção, desvio de dinheiro e fuga ao fisco. As autoridades não confirmaram tratar-se de um suicídio, mas a imprensa local citava uma carta que o empresário terá deixado em que tenta defender-se das acusações de corrupção.

Este quadro de corrupção galopante contrasta com a imagem que é comum associar a uma economia que faz parte do G-20 (o grupo que reúne as maiores economias do planeta). No índice mundial de competitividade, por exemplo, a Coreia do Sul aparece no 26.º lugar entre 130 países. Recentemente, o correspondente da BBC em Seul, Stephen Evans, descrevia a Coreia do Sul como um país em que “é possível esquecer a câmara fotográfica num local público, regressar sem preocupações e encontrá-la no mesmo sítio ou apenas arrumada para o lado e deixada de num local seguro”.

Na Coreia do Sul, o mau exemplo parece estar confinado às elites e segue uma tradição milenar, cuja passagem ao capitalismo nos anos 1970 apenas veio intensificar. Na base está o confucionismo “que valoriza não apenas a hierarquia nas relações sociais, mas também a reciprocidade, a ideia de que uma pessoa tem de pagar um tratamento atencioso”, escrevia em Fevereiro o historiador Kyung Moon Hwang no Korea Times.

Nesta lógica, o comportamento comum segue um padrão com poucas variações: assim que alguém chega a um cargo de relevância pública ou empresarial, há uma “obrigação” tácita de aceder a pedidos daqueles que lhe são mais próximos – e é essa expectativa que estes têm. A palavra-chave nesta relação é lealdade, diz Justin Fendos, professor na Universidade de Dongseo, que dá o exemplo extremo do caso do dirigente da Lotte, cujo aparente suicídio serviu para encobrir os potenciais crimes do seu superior. “É expectável que este tipo de lealdade seja recompensada na cultura coreana com os superiores a partilharem as fortunas com os seus seguidores”, acrescenta o professor num artigo publicado pela revista Diplomat.

Ao confucionismo junta-se o passado autoritário que tornou a sociedade sul-coreana muito hierarquizada. Depois da ocupação japonesa que durou até ao fim da Segunda Guerra Mundial seguiram-se quase 40 anos de ditadura militar, sem que esta tenha sido derrubada – em 1987 houve uma transferência pacífica de poderes após grandes protestos a nível nacional. “Por definição, as ditaduras não têm responsabilização ou transparência e, portanto, operam substancialmente através de métodos informais – que facilmente se reconhece como corrupção – independentemente das leis formais”, explica Kyung Moon Hwang.

Negócios de família

Os vícios da época ditatorial adaptaram-se à democracia e, sobretudo, à passagem para uma economia de mercado. Apesar de se terem tornado multinacionais gigantescas, as grandes empresas sul-coreanas, denominadas chaebol, continuam a ser um negócio de família. “Ser o dono de uma empresa bem-sucedida significa que se espera que partilhe a sua influência e poder com amigos e familiares, através de prendas, benefícios ou empregos”, observa Justin Fendos. Para além da abertura a práticas corruptas, esta situação traz outros efeitos indesejados como a falta de competência em cargos cruciais.

Segundo o New York Times, que cita dois antigos trabalhadores sob anonimato, o ambiente de trabalho na Samsung é “militarista” e as decisões são tomadas no topo por pessoas “que não percebem necessariamente como funcionam os produtos tecnológicos”, sugerindo que tenha sido essa uma das causas dos problemas relacionados com o modelo de telemóvel mais recente cuja produção e venda acabou por ser cancelada.

O desenvolvimento económico da Coreia do Sul marcado por décadas de crescimento acelerado – e que valeram a entrada no grupo dos “tigres asiáticos” – é referido como um dos bons exemplos de uma economia aberta, mas dirigida pelo Estado. Porém, o professor da Universidade de Pusan, Robert Kelly, aponta o modelo como gerador de um terreno propício para a corrupção. O Estado “direcciona regularmente recursos para sectores e empresas favorecidas (‘escolhendo vencedores’), abrindo um espaço amplo para que as elites empresariais e políticas interajam em termos monetários”, escreve no seu blogue.

A pressão para que tudo mude é cada vez maior. Em Setembro, foi aprovado um pacote legislativo anti-corrupção muito duro, cuja medida mais emblemática é a proibição de se oferecerem refeições acima de 30 mil won (cerca de 24 euros) a funcionários públicos. A lei foi alvo de um intenso debate que durou anos e é considerada muito polémica por adoptar uma definição de funcionário público que abrange jornalistas e professores, mesmo que trabalhem em instituições privadas.

Mas, para além de alterações legislativas, parece haver também uma mudança social. À medida que a imprensa expõe e os tribunais condenam, os sul-coreanos mostram que estão fartos de viver na “república da corrupção total”, como costuma ser apelidado o país por alguns jornais e activistas. Há várias semanas que centenas de milhares de pessoas têm enchido Seul por causa do escândalo que envolve Park, de quem esperam nada menos que a demissão. “O caminho futuro irá seguramente ter mais manchetes à medida que outras redes de lealdades, empresariais e outras, são expostas e desmanteladas”, nota Justin Fendos.

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