Bruxelas afasta visão restritiva de Berlim

A ameaça de uma revolução política também na Europa fez a Comissão mudar a sua orientação estratégica para a política económica, entrando em confronto com a visão mais restritiva e baseada na regras da Alemanha.

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Pierre Moscovici: "Portugal está a recuperar e a reformar, e a Comissão Europeia estará ao vosso lado se continuarem neste caminho" Daniel Rocha

Seis anos após o início da crise da zona euro, uma combinação potencialmente explosiva de ameaças populistas, de pressões orçamentais insustentáveis em alguns países e de críticas internacionais à política de excedentes comerciais da Alemanha está a assustar Bruxelas e a produzir mudanças substanciais na sua acção e política.

Com as crises políticas a sobreporem-se às crises económicas, multiplicam-se os sinais de que a Comissão Europeia está, num confronto pouco habitual com aquilo que são as convicções de governos como o alemão, a tentar concretizar uma viragem de estratégia na sua política económica que se resume em duas ideias fundamentais: reduzir a pressão exercida sobre os Estados membros que não cumprem as regras orçamentais e dizer de forma cada vez mais clara aos outros países que este é o tempo para gastar mais.  

Os sinais já vinham sendo dados desde que Jean-Claude Juncker assumiu que a sua Comissão seria muito mais “política” que a anterior. Mas tornaram-se ainda mais claros no dia em que Bruxelas divulgou a sua avaliação das propostas de orçamento dos países da zona euro. Apesar de muitos países terem apresentado orçamentos que, de acordo com os técnicos da Comissão Europeia, não seguem à risca as complexas regras europeias (apresentando por exemplo esforços de redução do défice estrutural que ficam abaixo do exigido), o país que acabou por ser colocado em destaque na apresentação feita pelo comissário Pierre Moscovici foi a Alemanha.

Não que o orçamento alemão para 2017 viole qualquer das regras orçamentais da zona euro (muito pelo contrário, cumpre todas com uma margem até bastante confortável). O problema identificado pela Comissão foi, antes pelo contrário, o facto de, no total da zona euro, a política não ser expansionista. Isto é, não contribuir o suficiente para o crescimento económico.

De uma forma inédita, a Comissão apresentou uma recomendação sobre qual deve ser a variação do saldo estrutural no total da zona euro no próximo ano (apontando para uma variação negativa de 0,2 pontos) e afirmou que cabe aos países com espaço de manobra orçamental garantir que se concretiza mesmo essa política expansionista. Este recado de Bruxelas tem um destinatário principal: a Alemanha, que continua a apresentar orçamentos de défice zero.

Ao mesmo tempo, além de ter optado por não propôr a suspensão dos fundos europeus a Portugal e a Espanha por aquilo que aconteceu em 2015, acabou por aceitar, sem exigências de mais medidas, todos os orçamentos apresentados, incluindo o de países que apresentaram variações do défice estrutural superiores ao previsto nas regras, como Portugal, limitando-se a identificar a existência de riscos de incumprimento das regras.

O ambiente está mais desanuviado em Bruxelas para os países que nos últimos anos têm sido mais pressionados pelos seus desequilíbrios orçamentais, mas inspira desconfiança em governos como o alemão que têm vindo a tentar fazer vingar uma política económica e orçamental reestrictiva que se baseia no cumprimento de regras.

O que conduziu a esta viragem na estratégia em Bruxelas?

“Há uma pressão externa e uma pressão interna que conduz a isto”, responde o economista Ricardo Paes Mamede, que, embora defendendo que aquilo que está a acontecer ainda não é suficiente, assinala que o novo posicionamento político da Comissão representa “uma viragem significativa”.

Do exterior, a fonte de pressão mais evidente nos últimos meses é o sentimento entre a actual liderança europeia de que os movimentos classificados como populistas ameaçam tomar o poder e que o fazem com base, para além da crise dos refugiados, num desempenho económico na Europa que ainda é muito insatisfatório e que não resolveu o problema do desemprego.

A vitória do “Brexit” no Reino Unido e de Donald Trump nos Estados Unidos fizeram soar em muitas capitais europeias e reforçaram o sentimento em Bruxelas de que é preciso, com urgência, começar a mudar.

Outra fonte de pressão externa que se tem vindo a acentuar está relacionada com o cada vez maior número de críticas das outras grandes potências económicas mundiais aos excedentes comerciais que a Europa apresenta. E também aqui, a eleição de Trump acentua o sentimento de urgência. “Em 2016, entre todos os países da zona euro, apenas a França irá apresentar um saldo externo negativo. Isto do ponto de vista geopolítico é insustentável. Não acredito que a Europa possa persistir com saldos externos tão positivos por muito mais tempo”, explica Ricardo Paes Mamede, assinalando que Trump tem como peça chave do seu programa económico a intenção de reduzir o seu défice comercial.

Há depois as pressões que surgem do próprio interior da Europa. Maria João Rodrigues, deputada socialista no Parlamento Europeu fala da existência de uma “mudança na correlação de forças” dentro tanto da Comissão Europeia como do conselho.

A deputada diz que, ao nível da Comissão, “este é um processo que não vem de agora”. “A correlação diferente passou logo a acontecer a partir do momento em que passámos a ter um presidente da Comissão mais dependente do Parlamento Europeu”, afirma, lembrando que “o investimento passou nessa altura a ser uma das prioridades”.

Depois, ao longo do tempo, foi notório, diz Maria João Rodrigues, que Jean-Claude Juncker e Pierre Moscovici, as duas pessoas “que sempre se preocuparam com uma leitura mais inteligente dos tratados”, “passaram a ter uma atitude mais afirmativa” e retirando destaque a outros actores como Valdis Dombrovskis ou Jyrki Katainen.

No Conselho, o que aconteceu foi que “questões como as novas ameaças de segurança e os refugiados levaram países como a Bélgica, Itália e França a ficar mais focados em mudanças ao nível da flexibilidade das regras europeias”, com a eleição de Trump a reforçar o argumento da necessidade de mais verbas para a defesa europeia.

Maria João Rodrigues conclui que “aquilo que está a acontecer mostra que uma acção concertada a nível europeu é possível”.

O economista João Loureiro tem uma visão menos positiva dos últimos desenvolvimento. “A viragem que parece observar-se em algumas posições da Comissão Europeia penso que tem que ver com a associação que tem sido feita entre as dificuldades por que passam estes países e as políticas contraccionistas adoptadas nos últimos anos. De uma forma que não é muito consistente, parece-me que a Comissão Europeia tenta agora aligeirar a sua responsabilidade em relação à política orçamental seguida por alguns países, como é o caso de Portugal”, afirma.

Confronto com a Alemanha

O facto de agora se produzir uma viragem não significa contudo que esta venha a demonstrar uma grande diferença ou que se mantenha no futuro. Para países como a Grécia, Portugal ou Itália, a aplicação de mais flexibilidade nas regras não impede que a Comissão continue a pedir a concretização de excedentes primários nunca vistos nas suas contas públicas, apesar de nessas economias o ritmo de crescimento ser actualmente muito baixo.

E para o futuro, a política que será seguida estará em larga medida dependente dos desenvolvimentos políticos em países como a Itália, França, Holanda e Alemanha.

Uma coisa é certa: aquilo que for feito pela maior economia da União Europeia continuará a ser decisivo para que qualquer estratégia que venha a ser definida pela Comissão Europeia venha a ter aplicação prática. E neste momento, aquilo que acontece é uma insatisfação evidente da Alemanha em relação às decisões adoptadas por Bruxelas, por exemplo, em relação à não apresentação de uma proposta de suspensão de fundos europeus e, principalmente, à recomendação de uma política orçamental expansionista na zona euro.

“O passo que se segue agora deve ser o de recomendar que a Alemanha invista mais”, diz Maria João Rodrigues, que não arrisca fazer grandes apostas em relação a qual será a reacção de Berlim. “Aqui teremos que esperar pelos desenvolvimentos da política alemã”, afirma.

Ricardo Paes Mamede assinala por seu lado que, no seu processo de decisão, a Alemanha “vai ter de levar em consideração questões geoestratégicas”, nomeadamente o facto de haver “uma insatisfação crescente em todo o mundo em relação à política económica alemã”, com críticas a surgirem dos EUA, do FMI e de outros pontos do Globo.

O economista prevê que “embora não seja agora impensável que a Alemanha abra os cordões à bolsa, isso apenas acontecerá se não for de forma considerada excessiva”.

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