Um ditador dos bons, ou dos nossos?
Até hoje se discute se Fidel foi mais comunista sozinho ou porque a paranóia anticomunista dos EUA o empurrou para isso.
A Biblioteca do Congresso dos EUA guarda uma carta escrita por um Fidel Castro de 12 anos ao então presidente Franklin Delano Roosevelt. O autor da carta é um rapaz inteligente e curioso, que escreve em inglês pedindo uma nota de dez dólares ao presidente e promete mostrar-lhe, se ele vier a Cuba, “as maiores minas de ferro do mundo”. Sendo já um patriota cubano é também um amigo do grande país vizinho, que se tinha tornado recentemente na super-potência que ainda é hoje. E no entanto, este menino, falecido há três dias com 90 anos, ficará na história como o mais persistente e resistente inimigo dos EUA entre dois séculos. Não é feito menor.
A história de como isto foi acontecer é tanto uma história pessoal de Fidel como uma história coletiva de Cuba e, sem escapatória, uma história da arrogância dos EUA. O apoio à ditadura de Fulgencio Batista e a utilização de Cuba como traseiras do quintal estado-unidense terão justificadamente transformado a visão de Fidel enquanto crescia. Quando ele, já líder revolucionário, tomou o poder, a incompreensão dos EUA foi ainda maior do que esperaria. O bloqueio foi e é um absurdo cruel; a firmeza de Cuba contra ele é mais do que justificada. Até hoje se discute, e durante muito tempo se discutirá, se Fidel foi mais comunista sozinho ou porque a paranóia anti-comunista dos EUA o empurrou a isso, da aventura de Kennedy na Baía dos Porcos à instalação de mísseis soviéticos na ilha — e como essa paranóia e contra-paranóia quase nos levaram à guerra nuclear.
Discutir-se-á tudo isso, mas quase como curiosidade. Porque, no fundo, o que se discute hoje não é nada disso, mas antes: Fidel era um ditador bom, um ditador dos bons, ou um ditador dos nossos?
Deixem-me contar um episódio. Recém-chegado ao Parlamento Europeu, fui a uma reunião entre o embaixador cubano e o meu grupo parlamentar. Só um deputado irlandês, trotskista e ex-padre católico (duas coisas — trotskista e católico — que nunca fui), teve a coragem de perguntar pela situação de um líder operário que estava preso por tentar formar um sindicato independente do estado. O embaixador respondeu: não vos posso dizer porque é que está preso, mas posso dizer que é por razões muitos graves, e peço-vos que confiem em mim.
Essa lógica recusei-a então e recuso-a agora. O embaixador cubano, diga-se de passagem, era um aparelhista do estado igual ao de qualquer estado, de esquerda ou de direita. Esse aparelho de estado foi Fidel que o criou, como foi Fidel que decidiu as execuções, a repressão, a censura e a prisão política. Sim, em tempo de guerra fria, quando a brutalidade era a norma. Mas também em plenos anos 2000 quando já nem a guerra fria o justificava. Por isso recuso a lógica de reconhecer o lugar de Fidel na história sem ter hoje uma palavra de solidariedade para quem seja reprimido por tentar organizar trabalhadores ou lutar por ideias como Fidel defendia que se pudesse fazer noutros países que não Cuba.
O mundo mudou de novo, e curiosamente é mais parecido com o mundo multipolar e confuso em que o pequeno Fidel escrevia a Roosevelt do que com o mundo bipolar em que eu cresci. Fidel até pode ser um ditador dos nossos — é da esquerda que é a minha família política — mas parem de dizer se a história o absolverá ou não. Isso não é tarefa da história. É tarefa vossa.
Não queiram vocês absolver a história. Queiram aprendê-la. Queiram superá-la. No nosso mundo multipolar e confuso, a última confusão de que precisamos é que a esquerda — e já agora a direita — queira absolver os seus ditadores para culpar os dos outros. A história há de enterrar-nos a todos. Lembrem-se já agora, ao menos por um pouco, do nosso presente e do nosso futuro. Eles serão um pouco melhores se soubermos tomar a responsabilidade de não absolver a falta de liberdade que nunca pode ser absolvida.