“Faculdades de Veterinária estão a vender um sonho que não se vai realizar”

Bastonário dos médicos veterinários está convencido de que é uma questão de tempo até animais de companhia passarem a poder acompanhar donos nos restaurantes e noutros locais onde a sua presença ainda está vedada.

Foto
Miguel Manso

Apesar de a taxa de desemprego dos médicos veterinários em Portugal ser das mais altas da Europa, o ensino superior continua a formar jovens “para o desemprego”, diz Jorge Cid, bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, que gostava de ver alguns cursos encerrados.

A Ordem faz este mês 25 anos de existência e esteve nesta sexta-feira reunida em congresso. E este foi um dos temas. “Não olhem para este curso como sendo rentável, porque as saídas profissionais cada vez são menos: o Estado deixou de empregar e o sector leiteiro, que dava muito trabalho, foi concentrado em grandes explorações que empregam um único veterinário", diz o bastonário.

Acredita que um dia irão por diante as restrições ao número de animais de companhia que se podem ter em casa, como chegou a ser proposto pelo anterior Governo?
Vamos opor-nos a isso com unhas e dentes, porque não faz sentido. Se não há uma lei que limita o número de pessoas por apartamento, porque há-de haver para os animais? E é completamente diferente ter dois caniches ou ter dois serra-da-estrela. Então uma pessoa não pode ter quatro chihuahuas num apartamento se não incomodarem os vizinhos? É proibir por proibir. E um apartamento pode ser um T0 ou um T6. É ridículo, não faz sentido. É quase como se dissessem que só se pode ter três filhos se se morar num T3. Restringir vai contra o bem-estar animal: implica que pessoas com grande disponibilidade para dar bem-estar e carinho fiquem impedidas de o fazer, porque já têm outros animais.

PÚBLICO -
Aumentar

Embora e lei em vigor já imponha certas restrições a esse nível.
Não é aplicada, ninguém liga muito a isso. Mas seja como for devia ser revista para não restringir as liberdades das pessoas. Não se pode ir a um jardim público com um animal, nem entrar num transporte público...

Tem esperança de que isso mude?
Vai necessariamente mudar, como já sucedeu noutros países da Europa. Quanto melhor um povo trata os seus animais, mais evoluído é. Em França ou Inglaterra entram em todo o lado — vão a um restaurante e ficam sossegadinhos, sentadinhos —, embora também os vejamos a comportarem-se melhor do que em Portugal, provavelmente fruto de uma canicultura mais evoluída. Aqui ainda se vêem animais mal-educados, que dificilmente poderão entrar em espaços públicos porque podem causar perturbações. No metro destes países as pessoas viajam com o seus animais. Aliás, em Portugal também há uma lei para poderem viajar nos transportes públicos. O problema é que ainda se criam muitos entraves a quem tem um animal de companhia — e isso leva ao abandono. Há condomínios que não os aceitam, por exemplo.

Isso é legal?
Há pareceres jurídicos que dizem que sim e outros que dizem que não.

Os centros de recolha de animais, vulgarmente chamados” canis municipais”, têm condições?
Existem situações muito boas e situações críticas. Quando vemos fotos de alguns deles até nos sentimos arrepiados. As câmaras nem sempre têm verbas.

Mas a lei permite que funcionem nesses moldes?
Não há alternativa. Como é que são autorizados a funcionar certos lares de terceira idade? Certas pessoas a viverem em condições sub-humanas? A quantidade brutal de animais sem dono que existe exigiria um grande aumento da capacidade de resposta. Mas percebo que se faltam verbas para os tais lares de terceira idade ou para centros de saúde também faltem para os animais.

PÚBLICO -
Aumentar

Dentro de menos de dois anos, de acordo com legislação já aprovada, será proibido o abate, nestes canis, de animais saudáveis ou recuperáveis. Haverá condições para tal?
Estou muito preocupado e tenho grandes dúvidas. Fez-se uma lei antes de haver bases para a executar. Não sei se não vai ser mais uma lei de aplicabilidade duvidosa. Não estão a ser ampliados ou criados de raiz em número suficiente os tais centros de recolha. Por outro lado, há sete ou oito anos que não se nomeia um veterinário municipal. É gravíssimo. Há mais de cem câmaras em Portugal que não têm um sequer, e eles é que deviam gerir os centros.

Existem municípios que optam por contratar veterinários no mercado de trabalho à sua conta para colmatar essa falha — quando os seus salários devem ser pagos em parte pela Direcção-Geral de Veterinária. O que pode ser perigoso, porque os inspectores sanitários devem ter uma ligação à entidade reguladora, como garante da sua independência.

Isso reflecte-se na saúde humana?
A segurança alimentar pode estar em risco no futuro.

Os portugueses podem confiar nos alimentos de origem animal que compram?
Se são de grande qualidade e segurança, é devido a um esforço brutal dos inspectores sanitários.

E a contaminação por antibióticos?
A resistência aos antibióticos pode vir um dia a matar mais pessoas do que o cancro. A facilidade com que se usam quer em pessoas quer em animais levou ao surgimento das bactérias multirresistentes, que têm levado à morte de humanos. O controlo da sua utilização tem de aumentar.

Há veterinários a mais em Portugal?
Sim. Mas há falta deles em certas áreas, como na inspecção e segurança alimentar. Há muita gente desempregada e sobretudo muito subemprego entre os mais novos, que ganham quantias ultrajantes. A um recém-formado que andou cinco anos a estudar são oferecidos entre 500 e 750 euros. Hoje em dia, as faculdades estão a formar pessoas para o desemprego. Neste momento temos mais de 300 veterinários a trabalhar fora do país, sobretudo em Inglaterra. Se fossem obrigados a regressar, não sei o que iriam fazer.

Quantos inscritos tem a Ordem?
Cerca de seis mil. Dentro de poucos anos, e segundo um estudo apresentado no Congresso dos Veterinários, esse número vai triplicar. Um país destes tem seis faculdades de Medicina Veterinária! Ao fim e ao cabo é estarem a vender um sonho que não se vai realizar. Não se está a contar a verdadeira história às pessoas que entram nestes cursos, e que não sabem o que os espera. Passados cinco anos vão andar à procura de emprego e a ganhar quantias de miséria, a não ser que optem pela emigração. Não olhem para este curso como sendo rentável, porque as saídas profissionais cada vez são menos: o Estado deixou de empregar e o sector leiteiro, que dava muito trabalho, foi concentrado em grandes explorações que empregam um único veterinário. A Ordem vai fazer um estudo de empregabilidade no sector.

Qual é a solução?
O ideal era arranjar empregos para toda a gente, mas como isso não passa de um sonho, a solução seria reduzir o número de alunos que entram ou fechar eventualmente alguns cursos.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários