Ciclos (a despropósito de Marraquexe)
Seremos todos prisioneiros do destino, subjugados por faraónicos desígnios, escravos do carbono?
A nossa experiência temporal está ancorada numa pluralidade de figuras, nenhuma delas exclusiva, todas complementares, embora o círculo ocupe lugar proeminente. Circular é a viagem da vida, como aprendemos com Ulisses. Cíclico é o ritmo do coração, e cíclica é também a natureza, numa sobreposição exuberante e numa permanente interferência de ciclos vitais, da água ao carbono. Circular é a órbita dos electrões, naquele modelo do átomo que Bohr figurou em 1913 e que ainda hoje, com doce engano, nos serve de introdução aos mistérios da mecânica quântica.
Equivocam-se também aqueles que pensam que o Atomium, ex libris de Bruxelas, construído para a Expo 58, um ano depois da fundação da União Europeia, figura um átomo - na verdade, representa uma célula do cristal de ferro, composta por nove átomos, embora as nove esferas tenham sido construídas em alumínio. Ah, Bruxelas, mãe de todos os equívocos da política europeia, através de ciclos e contra-ciclos, sempre iludindo materiais e formas. Equivocaram-se também, infelizmente, os que pensaram que a Expo 98 marcava o início irreversível de um novo ciclo de crescimento e modernidade em Portugal. Seremos todos prisioneiros do destino, subjugados por faraónicos desígnios, escravos do carbono?
Na fuga do Egipto, figura da libertação da humanidade do pecado, o povo disse a Moisés: “melhor nos fora servir aos egípcios, do que morrermos no deserto.” “Então Moisés estendeu a mão sobre o mar; e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite, e fez do mar terra seca, e as águas foram divididas. E os filhos de Israel entraram pelo meio do mar em seco; e as águas foram-lhes qual muro à sua direita e à sua esquerda.” Também hoje há quem acredite que é melhor permanecer na escravidão do carbono do que enfrentar uma transição energética exigente. Na sociedade actual, dita pós-dessacralizada, não são muitos os que laudam a criação, mas não faltam criacionistas e adeptos da geoengenharia, de vara na mão, a acreditar no milagre da salvação da catástrofe climática pela construção de muros de todo o tipo, à direita e à esquerda.
Será que temos consciência suficientemente nítida da necessidade de conciliar o tempo longo do ciclo do carbono, dos ciclos da natureza em geral, com o ciclo breve da vida humana, e que a política deveria construir pontes entre os dois, reconciliando-os, e não amplificar a dessintonia? Terá a dinâmica social que nos transportou do Rio a Quioto e a Paris a persistência necessária para prosseguir a viagem da descarbonização em tempo útil? E terá o sistema político-diplomático a resiliência necessária para implementar quanto acordado em Paris, eventualmente através de ciclos políticos adversos?
Escrevo na margem do Mar Vermelho, onde me atingiu o pedido para este artigo. A água, plácida e não vermelha. Vermelho é sim o céu, e vermelhas são algumas montanhas, incendiadas pelo céu em fogo crepuscular, contrastando com outras, apagadas, escuras, geologicamente incapazes de reflectir. Ocorre perguntar: Marraquexe - o fim do princípio ou o princípio do fim ? E recordar, talvez, aquele amargamente irónico Fim do autor de Céu em Fogo: “Quando eu morrer batam em latas / Rompam aos saltos e aos pinotes / Façam estalar no ar chicotes / Chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro / Ajaezado à andaluza.../ A um morto nada se recusa / E eu quero por força ir de burro!”
Antes de encenar o suicídio planetário, por alegado esgotamento de tempo – e excesso de carbono -, aprendamos a cavalgar as diferentes dimensões da temporalidade, integrando as múltiplas figuras acrobáticas numa nova representação da nossa interacção com o planeta e com os outros.