O pesadelo americano
Um eleitorado que cede às paixões mais primárias e se deixa embarcar num pesadelo assustador, imagem invertida do sonho americano.
Afinal, os piores receios concretizaram-se. «O sinal alarmante da degradação da democracia na América», que referi numa crónica anterior sobre a campanha presidencial, esse «grau zero da democracia» representado pelo perigo da eleição de Trump, passou do campo das especulações para o domínio dos factos.
O mítico sonho americano, obsessivamente perseguido desde a fundação do país e no qual se reviam povos de todos os quadrantes, converteu-se em pesadelo. Um pesadelo do qual o mundo se encontra suspenso desde a passada terça-feira, impulsionando vertiginosamente «as tentações populistas e autoritárias mais irracionais» que «se multiplicam um pouco por toda a parte» (como escrevi noutra passagem dessa crónica). Não há extremista político, populista isolacionista, ditador ou candidato a ditador que não se encontre reconfortado com a vitória de Trump.
As tentativas de desdramatização desse pesadelo ou de interpretá-lo racionalmente vêm-se multiplicando, como se aquilo que aconteceu não reflectisse a perigosa e contagiante esquizofrenia revelada pelo eleitorado americano. Afinal, muitos daqueles que não souberam prever o que acabou por acontecer – como eu também não soube, embora tenha apontado o perfil sombrio da candidatura de Hillary Clinton – entregam-se agora a uma espécie de masoquismo explicativo sobre as razões do fenómeno, rendendo-se acriticamente à legitimidade popular e democrática da vitória de Trump (apesar das distorções inerentes ao sistema anacrónico dos ‘grandes eleitores’ e de a maioria dos sufrágios ter sido conquistada por Clinton, conforme sucedera com Al Gore contra George W. Bush). Ora, quantos ditadores – incluindo Hitler ou Mussolini – subiram ao poder legitimados pelo voto popular, como ainda há pouco vimos com o sinistro Duterte, nas Filipinas?
A cólera dos excluídos e marginalizados pelo ‘sistema’ e pela globalização, a raiva contra as elites políticas, mediáticas e financeiras, o ressentimento agressivo da ‘maioria silenciosa’ e da ‘América profunda’, a reconhecida impopularidade de Clinton – mas sem esquecer também a de Trump, antes considerado inapto por uma grande maioria de americanos para o cargo de Presidente – são agora apontados como motivos decisivos da eleição do multimilionário, com um longo e conhecido percurso de falências e fuga ao fisco, para a chefia da Casa Branca.
Ora, por mais cólera, raiva e ressentimento que existissem – e, pelos vistos, existiam –, não parece possível explicar racionalmente que um perigoso mitómano de uma boçalidade tão grotesca, com um discurso impregnado de insultos, ódio, xenofobia e apelo aos mais baixos instintos humanos, recusando as evidências científicas mais elementares, que deveria suscitar incredulidade junto de qualquer pessoa provida do mínimo senso comum, tenha conseguido tornar-se o homem mais poderoso do Ocidente – e até, para já, do mundo. Afinal, quanto mais Trump levava aos extremos a sua retórica, mais os seus apoiantes se identificavam com ele.
As manifestações de civilidade que se esforçou por exibir depois da eleição, o seu enquadramento pelo Congresso e outras instituições, serão suficientes para neutralizar os desvarios em que tantos milhões de americanos acabaram por rever-se? Eis-nos perante a esquizofrenia de um eleitorado frustrado com a herança de Obama mas atribuindo ao Presidente cessante uma invejável taxa de popularidade. Um eleitorado que cede às paixões mais primárias e se deixa embarcar num pesadelo assustador, imagem invertida do sonho americano.