Um sentimento moderno
A antologia dos retratos feitos por Fernando Lemos dá-nos uma imagem possível do meio artístico português do imediato pós-guerra.
São dezenas e dezenas de retratos assinados por Fernando Lemos, realizados entre 1949 e 1952 (em tiragens de 2004), que compõem Para uma crítica do retrato colectivo em Portugal no fim dos anos 40, uma das exposições recentemente inauguradas no Museu Berardo, comissariada por Pedro Lapa. Atente-se ao título, porque ele enuncia um desvio voluntário da apreciação crítica mais vulgarizada sobre estas obras, justamente aquela que as inclui no grupo relativamente restrito da produção surrealista em Portugal. Fernando Lemos foi de facto surrealista, expondo logo em 1952 na Casa Jalco juntamente com Vespeira e Fernando de Azevedo. Na altura, não mostrou apenas fotografia, mas esta técnica acabaria por ser a que o individualizaria no seio da produção do grupo. A baliza temporal da actual exposição termina assim no mesmo ano em que Lemos iria assumir esta identidade surrealista, um ano antes da sua partida para o Brasil, onde faz vida desde então.
Do próprio Fernando Lemos aos amigos artistas plásticos, de escritores e actores com quem se dava até aos anónimos que foi fotografando, as obras de Fernando Lemos vão-nos dando sobretudo um retrato de um certo meio cultural moderno e educado que nos fascina. Os membros do Grupo Surrealista de Lisboa têm lugar de destaque, por vezes com imagens que ultrapassam a marcação do trabalho do seu autor para se converterem no próprio ícone do fotografado. Um auto-retrato envolto em nuvens de fumo de tabaco, por exemplo, é a imagem que imediatamente nos vem ao espírito quando pensamos em Fernando Lemos. Ou a Lavagem Cerebral de Alexandre O’Neill, o beijo entre Arpad e Maria Helena Vieira da Silva, a figura de Sophia como uma “Guerreira”, entre tantos outros.
Este sentimento moderno, que afinal passa também pela procura de uma identidade sonhada num ambiente que sentimos sufocante, tantas vezes reflectido nos enquadramentos escolhidos pelo autor, é função não apenas da escolha do modelo, mas da diversidade técnica que Fernando Lemos dominava e exibia na obra fotográfica destes anos. Aos ensinamentos de alguma fotografia dadaísta e surrealista que decerto conheceu e captou – é nítida a sombra tutelar de um Man Ray, por exemplo, em certas imagens – Lemos acrescenta a procura de uma linguagem própria feita de sobreposições e um controlo cada vez mais evidente de gamas de luz e sombra. Estes retratos possuem uma uniformidade notável, servida aqui por uma montagem de um rigor geométrico que contrasta com a óbvia vontade de romper hábitos e normas na obra de Fernando Lemos.
A exposição completa-se com a projecção do filme Luz Teimosa, sobre a obra e a pessoa do artista, através do prisma da procura feita nos dias de hoje de uma criança anónima fotografada nesta época. Há aqui um dos raros desvios do conceito da exposição, visto que essa fotografia não é uma imagem integrável nesse retrato colectivo, melancólico e moderno da intelectualidade urbana de finais da década de 40. Neste sentido, a selecção feita pelo curador adquire uma dimensão mais aberta, global, e podemos inseri-la num vasto conjunto de reflexões sobre a identidade portuguesa de que – para nos mantermos no âmbito da imagem fotográfica – o livro Lisboa cidade triste e alegre, de Victor Palla e Costa Martins, publicado em 1959, será um outro pólo. De qualquer modo, para além dos méritos próprios à técnica, que são obviamente inegáveis, estas imagens estão entre as melhores em termos artísticos surgidas nestes anos. O surrealismo, em Portugal, vive por vezes paralisado entre a admiração pela França e a vontade furiosa de criar qualquer coisa de novo. Lemos ultrapassa estes limites, decerto também porque deixa o país e constrói a sua própria nacionalidade a partir de quase nada. Nestes retratos, no enclausuramento que transmitem, estará talvez a chave para compreender esta decisão.