Isto não é bom, isto é muito bom

NBC continua a trilhar o seu percurso na música portuguesa, sempre com a palavra (cantada, rappada, falada) como centro.

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Isto não é bom, isto é muito bom

Desde o início da sua carreira a solo (depois de A Longa Caminhada, álbum de 1999 lançado com o irmão Black Mastah, com quem formou os Filhos de Um Deus Menor) que NBC vem empreendendo, corajosamente, um projecto artístico idiossincrático e raro no panorama do rap português.

E desde logo no gosto pelo canto, algo que, nos finais de 90, era quase heresia (“Deus deu-me uma bênção na voz”, viria ele a dizer mais tarde em A Voz, Maturidade, 2008), recusando entrincheirar-se nas gavetas mais puristas do rap (ao qual Afro-Disíaco, 2003, estava mais arreigado), mas simultaneamente não resvalando nunca para um eclectismo pós-moderno no qual cabe tudo e não cabe nada (e no qual, acima de tudo, a música não sabe a nada). Com raízes firmes na música negra dos anos 70 em diante (da soul ao funk, do rap ao r&b), NBC talvez tenha sido o único digno representante, em Portugal, da neo soul que, na América dos anos 90, Erykah Badu ou D’Angelo ajudaram a erigir como género autónomo (e que entretanto se esfumou em virtude das múltiplas declinações do rap, da electrónica e do R&B, comandadas por gente como Frank Ocean ou Gallant).

Se Maturidade (o título possuía um duplo sentido: pessoal e musical) era já um álbum muito orgânico (como as actuações com a banda Os Funks e o disco daí saído, de 2008, comprovam), e no qual o rap e o canto estavam já numa relação fifty-fifty, este último trabalho, desligando-se, descomplexadamente, da “ditadura” da batida, abraça declaradamente a canção, por sua vez apoiada numa orquestração e arranjos impecáveis em que pianos (que abrem e fecham o álbum como protagonistas), teclados e sopros (órgão, sax) sobressaem, embora haja lugar para os beats mais modernos e atmosféricos (Tudo, Nativo) que hoje se reproduzem como coelhos em quartos de miúdos talentosos por todo o mundo (cite-se Sango como uma entre mil referências).

De todo o modo, o rap não deixa nunca de estar presente (Hoje, És Luz), sobretudo em Espelho, na qual o convidado Sir Scratch mostra, sob o beat poderosíssimo de Slow J (produtor, rapper e cantor de Setúbal que tem ascendido meteoricamente desde o fabuloso EP The Free Food Tape lançado no ano passado, e para quem a figura de NBC é certamente uma inspiração), por que razão é um dos mais inteligentes e musicais rappers portugueses (é dele Em Nosso Nome, 2012, disco tão subvalorizado quanto precioso). Aliás, um dos atributos mais notáveis de NBC sempre foi a sua capacidade para alternar, de modo absolutamente natural, quase imperceptível, entre o canto (e quão elástica é a sua voz), o rap e a spoken word (registo que lhe é caro desde Mulheres, Afro-Disíaco), transição que se pode dar de um segundo para o outro (literalmente), como acontece em Estrelas, Nativo (faixa agradabilíssima em que as origens invocadas na letra coincidem com os ritmos locais de São Tomé, como o ússua ou o socopé, que se fazem sentir) ou Tudo, encantadora canção sobre o amor quase ao mesmo nível da lindíssima (se bem que mais trágica) Neve (EP EPidemia, 2013). Se ou Acorda se revelam momentos menos bons e sonicamente descontextualizados do disco no conjunto (a primeira embarcando num pop-funk dançável banal e “limpinho”, a segunda apoiada num bombo e, sobretudo, numa tarola conotados com o rap contemporâneo de gosto mais duvidoso), o certo é que as palavras de NBC, frequentemente poéticas e nunca vulgares, acabam sempre por prevalecer.

Omnipresente, além da narração autobiográfica do seu trajecto na música (marca que já vem de discos anteriores), é a toada positiva, humanista das letras (explícita no título do disco), de modo algum o fazendo cair, contudo, nos clichés dos discursos da auto-superação que por aí grassam. “Depois de quinze anos / sem certezas se era bom / Abri o envelope / de incertezas com o meu dom…”, interroga-se NBC logo em Intro; pois bem, em 2016, todas as certezas são de que isto não é bom, é muito bom...

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