Outro mundo
Sabia-se que essa América existia, ironizava-se com esse mundo bizarro que víamos nos filmes, herdeiro moderno das “vinhas da ira”
Há não muitas semanas, num seminário na Ucrânia, ouvi da boca de Leon Panetta, figura grada de administrações democráticas, a afirmação de que Donald Trump teria “muito fortes possibilidades” de vir a ser o próximo presidente americano. Devo dizer que, até esse momento, dava a hipótese completamente por absurda, irracional, sem sentido. Talvez porque, como muitos, transformei em certezas os meus desejos, num processo mental que os anglo-saxónicos designam por “wishful thinking".
Os impactos negativos potenciais de uma vitória de Trump eram para mim tão evidentes, a fragilidade das suas propostas tão óbvia, que qualquer racionalidade mínima tornava o cenário implausível. Só que a nossa racionalidade não se impõe à liberdade do voto secreto, por muito que às vezes sejamos tentados a desvalorizar a sua legitimidade.
Talvez mais do que um feito a crédito de Trump, a sua vitória é a constatação, clara e chocante, de que uma parte importante da América se rege por estímulos extremamente simples, assentes em ideias-chave quase caricaturais, por inseguranças e medos, por preconceitos e crenças, muitas vezes incapazes de passarem no teste da verdade dos factos.
Sabia-se que essa América existia, ironizava-se com esse mundo bizarro que víamos nos filmes, herdeiro moderno das “vinhas da ira”. Não se pensava que a cumulação de todos esses múltiplos fatores de descontentamento e de mal-estar viesse a ter uma expressão tão forte. Trump teve a arte de saber captar em seu favor a chave para transformar esses sentimentos em votos. E, goste-se ou não, a democracia também é isto.
E agora? Trump Presidente terá, com toda a certeza, um discurso diferente de Trump candidato. Mas até que ponto? Conseguirá a máquina republicana rodeá-lo com gente responsável, que ajude a transmutar uma caricatura num estadista? Em que medida algumas das suas propostas radicais, nas políticas internas ou na ordem internacional, irão claudicar no contraste com a realidade? Grande parte do mundo, para quem a liderança americana não é de todo indiferente, está agora em estado de choque. Eu também, confesso. Mas é a vida! Agora, temos de aprender a viver com Trump.