Curdos expandem o seu território na luta contra o Daesh
Desde 2014, os curdos aumentaram em cerca de 40% o tamanho da área que controlam no Iraque. Consolidar o território é um passo importante para a criação de um Estado — o objectivo desde que há um século as potências europeias desmembraram o Império Otomano.
Do terraço da casa que Abu Suhail ocupa, podemos ver as divisões étnicas do Iraque a alargarem-se. Tal como muitas das casas nesta cidade do Norte do Iraque, este edifício em cimento costumava pertencer a uma família árabe. Abu Suhail, um curdo que é proprietário de uma pequena loja, vivia ao fundo do quarteirão. Ele e a família partilhavam copos de chá com os seus vizinhos árabes; os seus dois filhos brincavam na rua com as crianças árabes.
Mas depois de o Daesh capturar Zumar na sua vasta ofensiva no Norte e Oeste do Iraque, em 2014, a maior parte dos curdos fugiu, deixando a cidade ao grupo de extremistas sunitas. Dois meses depois, os curdos retaliaram e expulsaram o Daesh. Agora, Zumar é habitada quase exclusivamente por curdos, muitos dos quais, como Abu Suhail, não tiveram qualquer hesitação em ocupar casas. Suhail diz que a casa que ele tomou pertencia a um árabe que apoiava os jihadistas.
A mesma mudança é visível em cidades e vilas por todo este território multi-étnico que divide a região de autonomia curda no Norte do Iraque da parte maioritariamente árabe, a sul. Enquanto os peshmerga — a força combatente curda — lutavam contra os islamistas, muitos árabes foram obrigados a deixar as suas casas. Logo a seguir vieram outros curdos, ocupando propriedades, destruindo edifícios e confiscando terrenos agrícolas. Desde 2014, os curdos aumentaram em cerca de 40% o tamanho da área que controlam no Iraque.
É assim que o mapa está a ser redesenhado no Iraque e na Síria: os grupos que combatem o EI estão a utilizar as batalhas para resolver disputas antigas e expandir o seu território. Os curdos afirmam que estão simplesmente a emendar erros históricos cometidos pelos sucessivos líderes iraquianos, particularmente o antigo ditador Saddam Hussein. A sua política de "arabização" no Norte arrasou com cidades curdas e levou à deslocação de centenas de milhares de pessoas.
Mas há quem diga, incluindo muitos dos membros do Governo liderado por Haider al-Abadi, que os curdos estão a criar novas tensões e a originar conflitos futuros. O aumento do poder curdo está também a preocupar os Estados vizinhos, que temem que as suas próprias minorias curdas possam seguir o exemplo dos seus congéneres do Iraque.
Nos últimos meses tem-se assistido a um aumento da tensão enquanto as forças governamentais iraquianas, curdas e milícias xiitas apoiadas pelo Irão se juntaram numa ofensiva para expulsar o EI do seu bastião na cidade de Mossul. Os membros desta aliança improvável partilham um inimigo comum, mas nada mais do que isso.
Podemos ver a tensão nos graffiti "Reservado a curdos" e "Viva o estado do Curdistão!" pintados nas paredes em zonas que antes pertenciam ao Daesh. Em Zumar, a casa incendiada de um árabe exibe uma palavra a tinta vermelha: "Curdo". Ao virar da esquina, a casa de outro antigo residente árabe parece ter sido demolida. Abu Suhail adianta que o proprietário apoiou os jihadistas. "Os árabes sabem que os direitos voltam para os legítimos donos", comenta, sentado na casa do seu pai perto da casa que agora reivindica. "Agora a nossa terra está nas nossas mãos".
Falah Mustafa, chefe do departamento curdo de relações externas, concorda. Muitos peshmerga morreram no combate contra o EI, diz à Reuters. O Governo curdo "não pode permitir que os sacrifícios sejam em vão reinstituindo a arabização, que é a política do regime anterior. Sem dúvida que o processo de arabização tem de ser revertido".
Um passado turbulento
Para os curdos, consolidar o seu território é um passo importante para a criação de um Estado — o seu objectivo desde que há um século as potências europeias desmembraram o império otomano. Novas fronteiras definiram o Iraque moderno, mas espalharam o povo curdo entre este e três dos seus vizinhos.
No Iraque, os curdos eram frequentemente reprimidos, especialmente durante o regime de Saddam. Zumar é um dos exemplos. A cidade antiga foi submersa na década de 1980 durante a construção da barragem de Mossul, a maior do país. Quando os níveis da água estão baixos vêem-se os topos dos edifícios mais altos.
Saddam mandou construir uma cidade para alojar a povoação numa terra que os curdos dizem que lhes foi confiscada. Passou as duas décadas seguintes a reinstalar árabes não só ali como por todo o Norte iraquiano.
As coisas mudaram depois da invasão liderada pelos Estados Unidos em 2003 que derrubou Saddam. Depois da primeira Guerra do Golfo em 1990, os curdos criaram um enclave que ficou protegido por uma zona de exclusão aérea apoiada pela coligação. Quando finalmente Saddam desapareceu, os curdos tornaram-se mais poderosos. Muitos regressaram às suas aldeias, ou ao que restava delas. E muitos árabes partiram, por vezes pressionados, por vezes voluntariamente.
Uma alteração constitucional previa um referendo sobre o futuro das zonas de fronteira. Mas o processo empancou devido a uma classe política fragmentada, que não conseguiu chegar a acordo sobre a forma de a concretizar.
Abu Suhail, agora com 40 anos, ainda não tinha nascido quando a sua cidade ancestral foi arrasada, na década de 1970. A sua família estabeleceu-se noutro lado. Mas em 2005, decidiram juntar-se a outros curdos que regressavam a Zumar e comprar terra ali.
A chegada do Estado Islâmico em Agosto de 2014 reacendeu medos antigos. Numa entrevista dado no ano passado, o presidente curdo Masoud Barzani afirmou ao diário pan-árabe al-Hayat que muitos sunitas iraquianos estavam a usar os islamsitas para fortalecer as suas próprias reivindicações. "Árabes chauvinistas… tentam fortalecer-se através do Daesh", afirmou. "Apoiaram o grupo no pressuposto de que isso resolveria o destino das chamadas áreas disputadas. Mas calcularam mal."
Os curdos expulsaram o Daesh de Zumar em Outubro de 2014. A cidade é agora fortemente controlada por forças de segurança curdas de camuflado, conhecidas como Asayish. Os residentes árabes que restam dizem que têm medo das retaliações se falarem. Mas, discretamente, alguns afirmam que as forças de segurança curdas expulsaram centenas de pessoas acusadas de ligações aos militantes. Tomaram ruas inteiras e zonas que antes pertenciam aos árabes.
A Amnistia Internacional calcula que sejam dezenas de milhares os residentes árabes impedidos de voltar às suas casas nas áreas disputadas, desde a fronteira com a Síria, a Oeste, à fronteira com o Irão, no Leste.
Os curdos garantem que apenas os que têm ligações ao EI é que estão impedidos de regressar, e apontam para as comunidades árabes que ficaram para provar que não há uma política de mudança demográfica.
"Eles sabem que não podem esvaziar totalmente os territórios de populações árabes. Isso simplesmente não seria realista. Por isso confiscam o máximo que podem", afirma à Reuters Donatella Rovera, conselheira da Amnistia. "Do seu ponto de vista, isto já é um progresso".
Ao redor de Zumar, a vegetação começa a ocupar os destroços de várias localidades árabes. Vários habitantes, e até alguns curdos, afirmam que as áreas foram arrasadas com bulldozers pelos peshmerga. Em vários bairros fora da cidade, praticamente todas as casas foram reduzidas e uma pilha de lixo. Num deles, o único edifício que ficou intacto é uma mesquita, com o minarete a erguer-se acima das ruínas.
Os responsáveis curdos negam estar a atacar propriedade árabe. Sustentam que os danos foram causados por ataques aéreos da coligação e pelos combates contra os homens do Daesh. Um porta-voz do Governo Regional do Curdistão (GRC) garante que não houve qualquer tentativa coordenada de punir os residentes árabes ou de impedi-los de voltar para as suas casas. "O GRC certamente não tolera que casas privadas sejam ocupadas pelos vizinhos", garantiu Dindar Zebari, chefe de um comité governamental que investigou relatos de abusos em Zumar e noutras cidades.
A história repete-se
O homem encarregado da segurança em Zumar é o coronel Noruz Balati, que passou 17 anos na prisão durante o regime de Saddam por causa do seu papel na luta pela independência do Curdistão.
Balati disse que mais de 80% da população árabe de Zumar se tinha juntado ou apoiado o Daesh quando estes ocuparam a cidade. A maior parte, disse, tinham sido postos na zona por Saddam e não eram árabes "originais" cujas famílias lá estavam há gerações.
Apenas 50 famílias árabes, uma minoria da população anterior da cidade, foram autorizadas a voltar a Zumar, disse. Admite que outros estão deslocados em território curdo e não foram autorizados a regressar a casa. "Suspeitamos deles", disse.
Enquanto isso, curdos cujas casas em localidades fora de Zumar foram danificadas ou ainda estão perto da linha da frente mudaram-se para a cidade. "Esta casa estava vazia, por isso mudámo-nos para cá", disse Said Othman, um professor curdo da localidade vizinha de Kahrez, sentado na sala de uma casa em Zumar que ele ocupou. "Não sabemos quem é o onde está o dono."
Quase tudo na casa pertence ao seu antigo proprietário árabe, disse. "Só a televisão é que é minha."
Alguns curdos dizem que irão regressar às suas casas quando for seguro, outros não vêem razões para sair. "A História repete-se: os curdos foram deslocados e agora voltaram", diz Adnan Ibrahim, 39 anos, de fita métrica de alfaiate pendurada ao pescoço. "As coisas voltaram À sua ordem natural."
A zona comercial de Zumar costumava ser predominantemente árabe. Agora, as lojas receberam novos nomes para reflectir os seus novos proprietários curdos.
Numa rua, há homens a aparar a barba num barbeiro chamado "mártires do Curdistão", e numa loja perto duas carcaças de animais estão sob o letreiro "talho peshmerga".
Um curdo de meia idade a arrumar latas numa prateleira num supermercado pequeno disse que a loja não era sua mas sentia-se no direito de o fazer porque o Daesh destruiu o seu próprio negócio. Nesse dia, um pouco antes, o verdadeiro dono da loja tinha lá ido pedir renda. Mas o curdo recusou-se a pagar, argumentando que o dinheiro acabaria nas mãos erradas porque o irmão do árabe vivia em território do Daesh.
O árabe, cuja casa também foi ocupada por curdos, confirmou que o seu irmão vive em território jihadista, mas que estava lá encurralado e não os apoia. Mais tarde conseguiu autorização de Asayish para recolher a renda, mas o curdo continuou a recusar-se a pagar, disse.
"Eu disse-lhe: tu és meu vizinho, conheces-me", disse o árabe por telefone, a partir de outra aldeia vizinha onde agora vive.
"Duhok apoia-me, os peshmerga protegem-me"
Zumar mantém-se oficialmente sob jurisdição de Bagdad, que paga os salários da maioria dos funcionários públicos, faz nomeações e dá verbas aos governos locais.
Mas há poucas dúvidas de quem controla a cidade. A bandeira iraquiana não está em lado nenhum e a administração de Zumar está cada vez mais integrada na província vizinha, curda, de Duhok.
Ahmed Jaafar, o curdo que lidera o subdistrito de Zumar, disse que Bagdad não fez nada pela zona. Mas Duhok deu-lhe um gerador de 50 kilowatts, ambulâncias e medicamentos.
"Em termos administrativos, oficiais, pertenço à província de Nínive, mas na prática Duhok apoia-me e os peshmerga protegem-me. Esta é a realidade."
Alguns árabes vivendo sob o regime curdo apoiam os curdos. "Eles (os peshmerga) libertaram a nossa terra com o seu sangue", disse um xeque árabe que no início do ano recolheu assinaturas numa petição para a zona de Zumar ser anexada à região. "A nossa lealdade é para com o Curdistão."
O campo de petróleo da região de Ainzala, com capacidade de 10 mil barris por dia, ainda é oficialmente operado pela empresa estatal iraquiana North Oil Company. Mas a sua força de trabalho diminuiu para cerca de metade porque muitos empregados árabes juntaram-se aos militantes ou estão encurralados no seu território. O resultado é que 60% dos trabalhadores são agora curdos, de 20% antes do Daesh, de acordo com o engenheiro supervisor.
Abu Suhail resumiu a disposição prevalente: "Somos tribais. Se um homem mata o meu irmão, mesmo que ele fique 20 anos na prisão, quando ele sair, eu tenho de o matar", diz. "Só então terá realmente acabado. O Estado não pode controlar isto. É impossível." Reuters