O diabo já chegou: chama-se Passos Coelho
A diabolização de Passos Coelho é o verdadeiro cimento que sustenta o governo.
Em 2016 não tivemos um governo, mas um regoverno: o programa de António Costa e dos partidos à sua esquerda limitou-se a repor salários, horas de trabalho, feriados. Em 2017, pelo que se pôde ver no debate sobre o orçamento, também não vamos ter um governo, mas um contragoverno: o programa de António Costa e dos partidos à sua esquerda não tem, mais uma vez, nenhuma estratégia para mostrar, limitando-se a vincar as diferenças em relação ao que seria o programa de um alegado governo de direita em Portugal. “Lembrem-se o que sofreram às mãos do PSD e do CDS”, disse Carlos César no Parlamento, naquilo que me pareceu um resumo perfeito do que pudemos escutar nos últimos dias. A tese da esquerda é esta: a grande força do Orçamento Seja o que Deus Quiser 2017 é ter impedido o Orçamento Seja o que Passos Quiser 2016.
Pedro Passos Coelho foi muito apressado a anunciar a vinda do diabo, mas para a esquerda o diabo chegou há muito – e é ele. Finda a grande vaga das reposições, a diabolização de Passos Coelho é o verdadeiro cimento que sustenta o governo. O Bloco de Esquerda admite que este orçamento tem limitações… mas se fosse um orçamento de direita seria bastante pior. O PCP admite que o orçamento fica muito aquém dos seus desejos… mas se fosse o de Passos Coelho seria o terramoto de 1755. Ora, quando se tem de engolir sapos tantas vezes, deixa de ser sacrifício para passar a ser gastronomia. O Bloco e o PCP já não estão a engolir sapos – eles estão a degustar perninhas de rã. Não vale a pena continuarem a fazer caretas. Estão a comer de livre vontade. E a gostar.
Se há mérito que António Costa tem é precisamente ter conseguido esse extraordinário empenho na protecção do governo por parte da esquerda, que é muito maior do que aquilo que alguma vez imaginei possível. Foi por isso que, durante a tarde de ontem, Carlos César não perdeu dois minutos a defender o orçamento de Estado – passou o tempo todo a atacar PSD e CDS. “Ainda não se habituaram à condição de oposição”, disse ele. É verdade. Mas ainda mais espantoso é o PS não se ter habituado à condição de governo.
É certo que António Costa iniciou o seu discurso em pose de estadista, recordando os “seis pilares do programa nacional de reformas”, aos quais chamou uma “estratégia de médio e longo prazo”, e que inclui medidas tão originais quanto a educação para adultos, a “indústria 4.0” (uma nova versão do plano tecnológico) e o Simplex +. Desconfio que José Sócrates terá pensado para com os seus botões: “Eu até posso não ter escrito os meus livros, mas pelo menos escrevi o programa de reformas de António Costa.” Mas depois de ter perdido algum tempo a relembrar medidas absolutamente fundamentais para a salvação do país, tais como a inauguração de lojas do cidadão e o desenvolvimento do regadio, a pose de estadista rapidamente ficou para trás, e o primeiro-ministro animou enfim as hostes ao soltar o grito de guerra do défice: “Nós conseguimos o que vocês falharam após quatro anos de governo!”
A partir desse momento, Costa continuou a martelar impiedosamente a oposição, como se ainda fosse ela que estivesse a governar. Poder-se-á argumentar que tudo isto é muito poucochinho. E, no entanto, é tudo aquilo que António Costa tem e é tudo aquilo que os seus apoiantes querem ouvir. Passos Coelho é o belzebu de estimação da esquerda portuguesa, e a solidez do seu pacto deriva disso. Não é preciso amor quando há tanto ódio para dar.