Deixar Mossul, a tragédia dos deslocados “apanhados no fogo cruzado”
No campo de Al-Khazir, nos arredores da cidade em poder dos jihadistas, residentes contam como fugiram à pressa, deixando tudo para trás.
Quando viu as forças iraquianas a aproximar-se, Abu Fahad pegou no lenço que o seu pai trazia na cabeça, fez dele uma bandeira branca de improviso, e saiu a correr para levar a sua família para fora de Mossul.
Quarenta familiares conseguiram deixar a cidade “avançando devagar, escondendo-se nas escadas ou colando-se aos muros das casas”, conta agora na tenda do campo para deslocados em Al-Khazir onde se juntou a inúmeras famílias em fuga aos combates contra o Estado Islâmico.
Foi “presa no fogo cruzado”, o dos jihadistas e o das forças iraquianas que tentam entrar em Mossul, que Abu Sara também partiu. Deixou o bairro de Samah, no Leste da cidade, levando pelo braço o filho nascido há apenas 15 dias.
“Havia snipers que atiravam, morteiros que caiam, era um verdadeiro inferno, uma tragédia total”, conta. “Caminhámos vários quilómetros, apenas com as roupas que trazíamos e bandeiras brancas que erguemos durante todo o caminho”, acrescenta este iraquiano de 34 anos.
Chegada às portas de Mossul, ofensiva entra na fase dificil
Ao seu lado, a prima Umm Mustafa acaricia o ventre de mulher grávida e ainda nem acredita que chegaram ao fim os dois anos em que viveu sob a alçada dos jihadistas – “Fizeram-nos esconder debaixo dos niqab”, os véus negros que escondem a cara das mulheres, cobertas por uma túnica da cabeça aos pés. Agora, no seu vestido azul e cobrindo a cabeça apenas com o hijab, esta mãe de sete crianças sorri. “Voltámos a viver, finalmente”, diz, abrangendo com o olhar os filhos que brincam na gravilha a seus pés.
“É pecado”
Umm Khaled segura com mão firme o neto, alvo da fúria dos jihadistas porque o seu cabelo não lhes agradava. “Eles puxaram-no pelo cabelo e disseram-lhe ‘tens de cortar isso, um rapaz ter cabelos longos é querer imitar as raparigas e isso é pecado'”, conta esta iraquiana de 63 anos.
Sob controlo do Estado Islâmico, “a vida parou em Mossul”, uma cidade com mais de um milhão de habitantes, a grande maioria dos quais continuam presos lá dentro, diz Abu Ahmed, de 60 anos. “Não há uma única fábrica a funcionar, não há mais trabalho, nem dinheiro”, explica este antigo funcionário do sector petrolífero que ficou no desemprego desde a chegada dos jihadistas à segunda maior cidade do Iraque, em Junho de 2014.
Sentado junto às torneiras instaladas na intersecção de quatro ruas de tendas, fazendo passar entre os dedos as suas contas de oração, este avô explica que não tinha planeado deixar Mossul e o seu bairro de al-Khadra. Mas quando combates se aproximaram do bairro de Samah estava a jantar com a mulher em casa de um filho, recorda-se. “Ficámos lá enquanto os bombardeamentos eram demasiado intensos para fugir, mas escapámo-nos assim que conseguimos e acabámos aqui”. “Deixámos tudo para trás. Agora só temos Deus.”
Sem novidades
Abu Fahad, a mulher e os seus seis filhos também não tiveram tempo para trazer fosse o que fosse. Mas agora estão a salvo, apesar de vários membros da família continuarem em Mossul. “Tenho duas irmãs no bairro de Al-Karama”, onde se desenrolam actualmente os combates, “e não tenho nenhuma notícia delas”, diz este homem de 32 anos. “Lá não há rede de telemóvel e o único sítio onde é possível captá-la é nos telhados, mas lá no alto há snipers”, lamenta-se.
Através de vizinhos que conseguiram sair com ele, soube que cinco pessoas do bairro foram mortas por ataques aéreos, tiros de obus ou na explosão de carros armadilhados conduzidos por suicidas do Estado Islâmico.
Carros armadilhados. É isso que inquieta Umm Khaled. Todos os dias telefona ao Exército para saber se foi junto à casa dela que explodiu mais um. Quando ela ainda estava em Mossul era aquilo que no jargão dos militares se chama uma “fonte”. Se eles queriam saber onde estavam os carros armadilhados dos jihadistas eles “conseguiram o que queriam”. “Mas agora todos os telemóveis estão desligados.”