The Kills, um rock inflamado a dois

De visita a Portugal para dois concertos em Lisboa e Porto, os The Kills trazem consigo Ash & Ice, álbum que o seu rock à flor da pele se abre a outras sonoridades.

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Concerto dos The Kills no 20.º Festival Super Bock Super Rock, no Meco em 2014 Pedro Elias
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Jamie Hince e Alison Mosshart Kenneth Cappello

Após a gravação e correspondente digressão de Blood Pressures (2011), Jamie Hince, o peculiar guitarrista e ocasional vocalista dos The Kills, achou que o meio mais apropriado para fazer jorrar a sua criatividade seria apanhar o expresso transiberiano. “Ele fez essa viagem para limpar a cabeça”, justifica Alison Mosshart, a voz principal do duo que mantêm quase desde que, tinha ela 17 ou 18 anos, numa passagem por Londres com a sua banda punk Discount, ouviu alguém a tocar uma guitarra “que não soava a nada que tivesse ouvido antes” no apartamento por cima daquele em que ia pernoitar e teve de arranjar maneira de conhecer quem estava por detrás daquelas quatro paredes.

Foi o rastilho inicial para a formação dos The Kills. O entendimento entre os dois foi imediato, ele colocou-lhes nas mãos um gravador de quatro pistas e incentivou-a a compor as suas próprias canções. “Depois segui em digressão pela Europa com a minha banda e todas as noites ficava acordada até de manhã a aprender a gravar com aquilo, a experimentar, a tocar guitarra pela primeira vez e a fazer umas canções esquisitas”, lembra Mosshart ao PÚBLICO. Quando voltaram a encontrar-se, sentaram-se a ouvir aquele material e os esquissos de “canções tortas” da cantora deixaram Hince num alvoroço. Ele pegou naquele material, trabalhou sobre aquelas ideias e, assim que os Discount se deram por finados, surgiu o primeiro lote de canção dos The Kills.

O processo não mudou grande coisa desde 2000. As canções trazidas por Hince do Transiberiano, convencido do efeito terapêutico da viagem sobre a sua criatividade e escritas durante os dez dias em que esteve fechado no comboio sem ninguém com quem conversar, juntaram-se às ideias rascunhadas por Alison no seu próprio retiro. “Fui convidada para uma pequena ilha (Whidbey) ao largo de Seattle, para um retiro de escrita para mulheres”, conta. “”Fiquei numa cabana no meio da floresta, sem ninguém à minha volta, não havia rede telefónica nem Internet. Escrevi 14 canções e pintei 75 quadros numa semana. Foi uma loucura! É extraordinário aquilo que se consegue fazer quando não temos ninguém a chatear-nos.”

Dessa semana em retiro saiu, por exemplo, Heart of a dog, um dos temas que compõem Ash & Ice, quinto álbum do duo, apresentado esta quinta e sexta-feira em Lisboa (Coliseu dos Recreios) e Porto (Hard Club). Da mesma maneira que do Transiberiano Hince trouxe Siberian nights, tema que tem descrito em entrevistas como uma canção “sobre Vladimir Putin com um feeling homoerótico”.

Cuidado com os dedos

Já não é a primeira vez que um álbum dos The Kills é seriamente afectado por ferimentos de Jamie Hince nas mãos. Depois de alguns problemas nos nós dos dedos que o obrigaram a levar injecções de cortisona para poder continuar a tocar, os últimos anos do músico implicaram várias cirurgias e a remoção de um tendão depois de entalar um dedo da mão esquerda na porta do carro. Em consequência, teve de reaprender a guitarra com as limitações físicas consequentes, ao mesmo tempo que investia mais seriamente no estudo de técnicas de gravação e trabalhava no computador outras bases para a música do duo. “Podemos lamuriar-nos dias inteiros acreditando que é tudo quanto podemos fazer, mas isso seria uma mentira”, ri-se Mosshart, afirmando a sua crença em haver “sempre algo de bom trazido pelas limitações”.

No caso, Ash & Ice explora novas sonoridades que a rudeza garage rock dos The Kills nunca antes deixara despontar. É impossível não detectar uma toada r&b a conduzir os destinos de Let it drop, tal como não é propriamente discreta a sombra dancehall que embala Days of why and how. “Um disco é habitualmente formado por uma ideia ou uma bandeira de querer soar assim ou assado”, considera Alison. “E fizemos isso no passado, em que submetemos os álbuns a regras muito concretas que os ajudaram a ter um determinado registo. Desta vez não quisemos nada disso, por isso acaba por ter uma visão muito honesta sobre muitas coisas de que gostamos.” Days of why and how chegou a ter quatro versões diferentes – “e até podíamos tê-la transformado numa canção heavy metal”, exagera a cantora – e só em estúdio acabaram por escolher aquela que mais lhes agradava.

Essa fuga a padrões musicais mais óbvios para os The Kills foi motivada não apenas pelo pavor da repetição, mas também pela segurança de que a identidade do duo é assegurada por uma combinação que Mosshart resume à maneira como Hince toda guitarra e à forma como ela canta. Basta isso para existir um fio condutor que atravessa tudo aquilo que colocam em disco ou em palco. E se em disco é quase palpável a química de “um num bilião” entre os dois, no início da sua carreira era difícil não pasmar com a tensão sexual que transbordava em cada concerto, quando tocavam e cantavam virados um para o outro e as descargas rock inflamavam o curto espaço entre os dois. “Sabemos que temos algo muito especial e quando assim é faz-se tudo para proteger essa relação”, admite. E o palco é o lugar certo para isso.

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