PJ Harvey tem coisas muito importantes para dizer – outra vez
The Hope Six Demolition Project resultou de viagens ao Afeganistão, ao Kosovo e a Washington. É um álbum negro, habitado pelos fantasmas bem vivos deste nosso tempo. Agora chega ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa.
Não será um concerto de blues endiabrado e guitarra em punho a corroer o rock’n’roll. Não. Isso já foi há muito tempo e, neste tempo, não é isso que PJ Harvey persegue. Ou melhor, será um concerto de blues, mas blues arrancado às entranhas, blues enquanto retrato e denúncia. Sabemos porque vimos o que aconteceu dia 10 Junho no Nos Primavera Sound, no Porto, quando PJ Harvey assinou o concerto mais relevante, o mais negro e emocionalmente intenso do dia, com entrada directa para a história do festival. Quem o viu, ou quem ouviu os relatos do que se passou, não pode não estar ansioso pelo reencontro esta quinta-feira no Coliseu dos Recreios, em Lisboa (21h, bilhetes a 40 euros).
Cinco anos antes víramos a primeira parte desta história, quando PJ Harvey apresentou Let England Shake em duas datas esgotadas na Aula Magna, em Lisboa. Era um álbum inspirado em leituras sobre a Primeira Guerra Mundial e sobre a poesia que brotou daquele cenário. Um álbum habitado por fantasmas dolorosos e permanentes, os da guerra que tudo ceifa, das trincheiras que sufocam, da impotência do homem soldado que não passa de peão de uma máquina que não controla. Cantou-o vestindo de negro, plumas caindo-lhe sobre o rosto. “What is the glorious fruit of our land?”, perguntou em The glorious land, “Its fruit is deformed children”.
The Hope Six Demolition Project foi o passo seguinte, o segundo tomo de um díptico (afirmamo-lo com margem para erro, dado desconhecermos se terá continuidade) que começou em terras distantes, o das trincheiras de 1914/1918, e que, depois, inspirada pelo trabalho do fotojornalista Seamus Murphy, levou PJ Harvey a perseguir a morte, a turbulência, a iniquidade das desigualdades e a impunidade de quem decide no Afeganistão, no Kosovo e em Washington – o título do álbum é uma referência a um programa federal americano de revitalização de bairros sociais problemáticos.
No Nos Primavera Sound vimos um palco onde o negro imperava, onde a luz era trabalhada para que se destacassem mais as sombras dos músicos do que os seus corpos. As vozes graves uniam-se como um coro gospel, ou como um coro de tragédia grega, acentuando a sensação de que o presente cantado tinha raízes fundas no tempo. PJ Harvey não pegou na guitarra uma única vez, substituindo-a pelo saxofone que dardejava notas sobre as melodias e sobre as tarolas rufadas como marcha assombrada, acentuando o ambiente fantasmagórico vivido durante todo o concerto. The Hope Six Demolition Project foi, como não podia deixar de ser, o centro de tudo. PJ Harvey só se afastou dele para recuperar os longínquos To bring you my love e Down by the water ou The words that maketh murder, do antecessor Let England Shake.
A julgar pelo alinhamento dos últimos concertos da digressão, em Itália, essa estrutura manter-se-á razoavelmente inalterada na apresentação portuguesa, em nome próprio, de The Hope Six Demolition Project. Não se espere, portanto, uma celebração de carreira, uma visita guiada ao percurso iniciado por PJ Harvey em 1992, com Dry. Polly Jean tem coisas muito importantes a dizer e quer mostrá-las sem distracções. A julgar pelo extraordinário concerto de Junho, onde surgiu acompanhada, por exemplo, pelos habituais cúmplices Mick Harvey ou John Parish, resta-nos ouvi-la muito atentamente.