Há uma Lisbon perdida no Maine e de costas voltadas para as eleições

Stephen King, que ali andou no liceu, inspirou-se no ambiente — as lojas vivas, as ruas cheias de gente — para 11/22/63. Agora, esta terra de nome injustificável sucumbe ao “vende-se” e “arrenda-se”.

Foto
Frank Anicetti na Kennebec Fruit Company, que fechou em Fevereiro Alexandre Martins

As folhas caem das árvores lentamente, uma verde, uma castanha, uma amarela, tudo como o Outono gosta, mas o olhar de Frank Anicetti passa por elas sem pestanejar e cola-se ao outro lado da rua, onde o vazio ocupa agora o lugar da antiga fábrica de tecidos Worumbo. Através da janela da sua loja, ela ainda de pé mas também já sem vida lá dentro, Anicetti pergunta-se o que aconteceu à sua Lisbon, uma pequena cidade perdida no sudoeste do Maine onde as promessas de Hillary Clinton e Donald Trump nada fazem para empurrar a depressão e a saudade daqui para fora.

Frank é o terceiro de três Anicetti, avô, pai e filho, que durante 103 anos foram servindo gelados, refrigerantes, fruta e outras coisas que tais nesta zona de Lisbon à beira rio conhecida como Lisbon Falls, grande parte deles às centenas de trabalhadores que entravam e saíam da fábrica-coração Worumbo, fundada em 1864 e demolida há apenas três meses.

Em Fevereiro, já com a notícia da demolição da fábrica nas mãos, Frank Anicetti decidiu também fechar as portas. Reformou-se porque os médicos disseram-lhe que o stress podia levá-lo primeiro a ele e só depois a loja, e acabou por matar mais um bocadinho da história de Lisbon.

Baptizado Kennebec Fruit Company em 1913, o espaço foi-se transformando num museu e santuário para os fanáticos do Moxie, um refrigerante mais antigo do que a Coca-Cola e elevado à categoria de bebida oficial do Maine em 2005 – todos os anos, desde 1982, a população de Lisbon Falls engorda de quatro mil para 40 mil ou 50 mil pessoas, vindas de todo o país para celebrarem o seu amor à bebida durante os três dias do Moxie Festival, sempre na segunda semana de Julho.

A loja está à venda por 99 mil dólares mas propostas a sério nem vê-las, diz Frank Anicetti enquanto abre a porta do edifício de dois andares onde a tinta falta e a ferrugem abunda, com o vagar que os 76 anos de stress lhe permite, camisa grossa aos quadrados porque está frio, calças duplamente sustentadas por um discreto cinto preto e vistosos suspensórios cor de laranja.

Sempre que volta à loja para mostrar o que restou de um leilão que lhe levou a maior parte das memórias, Frank divide-se em dois: o alegre e estimado cidadão nascido e criado em Lisbon que responde a todas as perguntas sobre a cidade com um sorriso nos lábios e o melancólico protagonista de um filme muito antigo e já esquecido que fala do passado com os olhos a tremer por trás dos óculos. “De cada vez que olho para ela, tenho vontade de voltar a abri-la.”

“Naqueles tempos, a loja abria às seis da manhã e só fechava à meia-noite. Nas décadas de 1950 e 1960 havia três supermercados aqui na rua, três lojas de roupa, quatro barbearias e dois bares. Nas noites de sexta-feira esta rua estava cheia de pessoas. Era bom voltar a esses tempos, as pessoas eram mais unidas.”

Se o cenário é familiar para quem leu o livro 11/22/63, de Stephen King, ou viu a série com o mesmo nome protagonizada pelo actor James Franco, não é coincidência – era aqui a esta rua, a Maine Street de Lisbon Falls, que o autor de Carrie, The Shining” e Misery chegava de táxi para frequentar a escola secundária de Lisbon, um quilómetro mais acima, e onde Frank também andou. Ao fim da tarde, no regresso a casa, o adolescente King parava na loja de Frank Anicetti pai e falava com Frank Anicetti filho – o homem do discreto cinto preto e dos vistosos suspensórios cor de laranja.

“Eu e o Stephen King somos grandes amigos. Ele costumava passar a tarde na nossa loja, falávamos sobre tudo”, diz Frank, não escondendo o orgulho por ver o seu nome e o da sua loja num best seller: “Lê o livro, vais encontrar lá o meu nome, Frank Anicetti. Podes dizer aos teus leitores que apertaste a mão a esse Frank Anicetti.”

Mas o fecho das fábricas em Lisbon e noutras cidades do condado de Androscoggin nas décadas mais recentes deixou esta Main Street despida de qualquer romantismo. Há uma livraria aberta e ainda com muitos livros, um salão de beleza com as portas fechadas e o Dr. Mike’s Madness Cafe. O que sobra nesta rua são cartazes com duas das palavras que mais se lêem por aqui: “Vende-se” e “Arrenda-se”. Ao lado de uma loja da cadeia Family Dollar, os antigos donos de uma mercearia agora fechada agradecem aos seus antigos clientes o prazer de terem feito negócio: “Encerrado. Obrigado pelos 64 anos.”

Falar sobre a louca corrida para a Casa Branca, sobre os debates e as informações que os jornais e as televisões vão debitando a um ritmo que esta cidade já não conhece há pelo menos 20 anos é um exercício difícil. Com a televisão desligada e os alertas do telemóvel em off, Lisbon, Maine, está muito mais distante das eleições presidenciais norte-americanas do que Lisboa, Portugal.

No Dr. Mike’s Madness Cafe, um restaurante saído de um filme da década de 1950, a realidade choca de frente com esses tempos em que se ganhava pouco mas também pouco se pagava. O hino dos Estados Unidos começa a tocar nas colunas, cantado por sabe-se lá quem, mas ninguém se levanta – porque não é caso para isso, afinal é só uma música como outra qualquer, e porque quem podia levantar-se já está de pé há muitas horas. Duas empregadas, uma gerente, clientes zero.

Foto
Alexandre Martins

Kimberley aproxima-se e pergunta se é para almoçar e fica curiosa quando sabe que também é para falar. Sobre Lisbon, sobre as eleições, sobre Hillary Clinton e Donald Trump.

Mas Kimberley quer falar sobre o filho, que se chama Damian, tem 23 anos e é sargento no Exército norte-americano. Quer falar muito sobre o filho, que está no Japão desde 2015. Só vai voltar a vê-lo em 2018, quando o mundo lá fora já se tiver esquecido destas eleições.

E quando ela consegue esquecer as saudades do filho por uns segundos, diz que só vai decidir em quem vai votar no dia das eleições. Não porque não saiba o que está em jogo no país, mas porque para ela é muito mais importante o que está em jogo no atrelado onde vive há oito anos, muitos dias sem luz e água quente. Mesmo assim, tem dúvidas sobre as propostas de aumento do salário mínimo que Hillary Clinton incluiu no programa eleitoral por pressão do seu adversário nas eleições primárias, Bernie Sanders.

“Gostava que as pessoas ganhassem mais para que não tenham de viver às custas da segurança social, para que possam pagar as rendas e as compras com o seu dinheiro. Mas se eles aumentarem o salário mínimo, o custo de vida também vai subir. E os outros também vão exigir aumentos. As coisas já estão tão difíceis assim…” Pode ser um choque para muitas pessoas na Europa e nas grandes cidades norte-americanas, mas aqui em Lisbon, no estado do Maine, a fúria contra Donald Trump ou o ódio a Hillary Clinton são coisas que entram por um ouvido e saem rapidamente pelo outro. Quando se tem um filho no Japão, um atrelado sem água e sem luz, a prioridade não é a gritaria no Twitter: “Se eu tivesse dinheiro, saía do Maine. Ia viver para o Wyoming ou Montana, para poder ver os meus familiares. Tenho uma irmã com 27 anos e quase nunca a vejo.”

A colega de Kimberley, Susan, trabalha no Dr. Mike’s Madness Cafe há poucas semanas e já tem os olhos postos no próximo trabalho – os boatos sobre o fecho do restaurante são tantos que Susan quer estar sempre um passo à frente. E isso das eleições, o que importa, Susan?

“Não vou votar. Ouvi dizer que a Hillary e o Trump são amigos, mas só estão a fingir que se odeiam. Nos debates nenhum deles falou sobre o que vão fazer pelo país, só os ouvi falar como se estivessem na escola primária. Ai tu não pagaste os teus impostos, ai tu não revelaste os teus emails, nha-nha-nha, tu apalpaste mulheres. O que é que isso tem que ver com o país? Não digo que o que ele fez é correcto, mas os homens são sempre iguais, os homens são uns porcos. Tiveram tempo para dizer o que vão fazer, mas ele só disse make it great again e ela disse o que as pessoas queriam ouvir.”

Uns passos mais à frente fica a livraria da cidade, onde William Meakin recebe mais clientes do que Kimberley e Susan no Dr. Mike’s Madness Cafe. Tem 45 anos e vive aqui há oito, mas nem ele sabe o que levou os fundadores desta cidade a chamar-lhe Lisbon.

Faz o favor de ir a uma estante buscar um livro antigo sobre a história de Lisbon e encontra a passagem que nos faltava: “Sem nenhuma razão aparente a não ser devido ao facto de ser um nome curto, um dos residentes sugeriu o nome Lisbon.” A mudança aconteceu num referendo em 1802, três anos depois de o tribunal do estado do Massachusetts lhe ter atribuído o nome Thompsonborough. “Devem ter gostado da sonoridade do nome e ficou no ouvido”, imagina Meakin.

Foto
Alexandre Martins

O que não falta no Maine são cidades com nomes de países europeus ou outras cidades europeias, a maioria do Reino Unido, devido à origem de muitos dos seus primeiros habitantes. Mas também há Belgrado, Calais, China, Dinamarca, Dresden, Egipto, Frankfurt, Hebron, Líbano, México, Moscovo, Nápoles, Noruega, Peru, Polónia ou Palermo. Muitas delas mudaram de nome por razões políticas – o México e o Peru devido às lutas pela independência desses países na primeira metade de séxulo XIX –, mas Lisbon é uma das que parece não ter quaquer ligação directa. Num levantamento feito em 2015 pela principal estação do estado Maine, a Maine Public, lê-se apenas que “esta cidade tem o nome da cidade portuguesa, mas o motivo dessa decisão perdeu-se nos tempos”.

Com a questão resolvida e a caminho da Escola Secundária de Lisbon, ainda na Main Street mas com as lojas lá atrás, as casas vão surgindo aqui e ali, muitas a precisar de uma nova pintura, só duas a lembrar os visitantes que o Halloween está a chegar. “Não ouvi falar de uma única festa com miúdos nos últimos tempos”, tinha dito Frank Anicetti umas horas antes. “Antigamente tínhamos as lojas todas decoradas para o Halloween e para o Natal e agora é isto, quase nenhuma decoração.”

David Letourneau é um dos poucos professores que ficou para trás depois do fim das aulas. Ensina Matemática há 27 anos, e é na sala 309 que tem falado com os seus alunos sobre as eleições, embora não haja muitos com idade suficiente para votar.

“Se as eleições fossem aqui, acho que a Hillary Clinton ganharia, mas há muitos alunos a falar sobre o candidato do Partido Libertário, Gary Johnson. Os libertários falam muito sobre a legalização da marijuana e isso é um tema muito discutido numa escola secundária”, diz David Letourneau, lembrando que o este ano os eleitores do Maine vão ser chamados a dizer se aprovam ou não o consumo de marijuana por maiores de 21 anos, à semelhança do que já acontece em estados como o Colorado, Washington, Alasca e Oregon.

Mas o discurso deste professor de Matemática não é muito diferente daquele que se ouve no Dr. Mike’s Madness Cafe, e indica que a abstenção pode ser mesmo o maior adversário de Hillary Clinton em Novembro. “Estou extremamente desiludido com os dois principais candidatos. Ainda não decidi o que vou fazer, mas já reduzi a coisa a duas hipóteses: ou fico em casa, ou voto no candidato de outro partido. Não consigo votar em nenhum dos dois principais, e não entro no jogo do voto útil. Eu ensino estatística e fico chateado com as pessoas que caem nesse jogo. Não se esqueçam de que há mais partidos.”

alexandre.martins@publico.pt

Sugerir correcção
Comentar